UNIVERSIDADE DO PLANALTO CATARINENSE— UNIPLAC
ANDRESSA ALMEIDA NUNES
ORGULHO E PRECONCEITO: DA IDEOLOGIA PROTOFEMINISTA AO ETHOS DISCURSIVO
Lages- SC 2017
ANDRESSA ALMEIDA NUNES
ORGULHO E PRECONCEITO: DA IDEOLOGIA PROTOFEMINISTA AO ETHOS DISCURSIVO
Monografia apresentada à banca examinadora como pré-requisito à aprovação na disciplina de Monografia do sétimo semestre do curso de Licenciatura em Letras da Universidade do Planalto Catarinense.
Orientadora: Schirlei Aparecida Braz de Souza
Lages- SC 2017
À Lívia, meu maior tesouro, minha preciosa filha, dedico este trabalho. Obrigada por entender por que a mamãe não pode passear...
À professora Msc Schirlei Aparecida Braz de Souza pela sua orientação, direcionamento e por me fazer enxergar horizontes, que eu se quer conhecia.
À professora Msc Maria Janete Vanoni pelas dicas e puxões de orelhas dados tão carinhosamente.
Ao Professor/Coordenador Msc Élson Rogério Bastos por seu auxílio ao longo da graduação.
Aos professores do Curso de Letras, que partilharam seus saberes.
Aos meus amigos, por entenderem minha paixão por Jane Austen, pela Linguística e também por compreenderem a minha ausência.
— Não me considere, agora, como uma mulher elegante, pretendendo incomodá-lo, mas sim como uma criatura racional, falando a verdade de todo o coração.
(JANE AUSTEN, 2016, p.133)
Esta pesquisa, intitulada: Orgulho e Preconceito: da ideologia protofeminista ao ethos discursivo, tem como objetivo evidenciar a ideologia do romance, com foco no Ethos discursivo presente na personagem principal e como influenciaram as mulheres pela busca de igualdade. A escolha desta obra justifica-se por sua protagonista ser dona de uma personalidade forte e racional, atitude fora dos padrões do século XVIII, além da importância da interdisciplinaridade entre literatura e linguística. A fundamentação teórica que sustenta a análise do romance concentrou-se na teoria enunciativo- discursiva de Dominique Maingueneau (1996, 1997, 2013), quanto à abordagem linguística, bem como nos estudos de Bakhtin (1997, 2011), Brandão (2008), Orlandi (1997, 2001, 2002) Sobral (2009), Lacan (1985), Pêcheux (1988, 1996), Citelli (1999),
Ducrot (1972), Brait (2013) e Serena (2013). A metodologia adotada caracteriza este estudo como bibliográfico, com abordagem qualitativa e de caráter exploratório. A pesquisa evidenciou que o discurso e o ethos presentes na personagem principal, Elizabeth Bennet, eram incomuns à época. Elizabeth defendia a liberdade de opinião e de escolha da mulher, colocando-a em destaque, haja vista a pouca ou nenhuma representatividade crítica feminina naquela época. Desta forma, este trabalho torna- se relevante, à medida que as questões de gênero são cada vez mais discutidas, porém, elas precisam ser entendidas para que ganhem força.
Palavras-chave: Análise do Discurso. Ethos. Mulher. Ideologia. Jane Austen.
This research, entitled: Pride and Prejudice: From Ideology proto-feminist to discursive Ethos, it has how aims to evidence the ideologie of the novel, how afocusing on the discursive Ethos present in her main character and influenced women as search for equality. A choice of this work is justified by its protagonist, owner of a strong and rational personality, attitude to the standards of the eighteenth century, and the importance of interdisciplinarity between literature and linguistics. A theoretical foundation that underpins an analysis of the novel focused on the enunciative- discursive theory of Dominique Maingueneau (1996, 1997, 2013), on the linguistic approach, as well as in the studies of Bakhtin (1997, 2011), Brandão (2008), Orlandi (1997,2001,2002) Sobral (2009), Lacan (1985), Pêcheux (1988, 1996), Citelli (1999),
Ducrot (1972), Brait (2013) and Serena (2013.) The methodology adopted characterizes this study as the research evidenced that the discourse and the personality in the main character, Elizabeth Bennet, are unusual at the time, being in defense of the freedom of opinion and choice of the woman, placing it in prominence, there is the visa is a little or a critical feminine representation at that time. In this way, this work becomes relevant, as gender issues are increasingly discussed, however, they are necessary for them to gain strength.
Key-words: Discourse Analysis. Ethos. Woman. Ideology. Jane Austen
Falar sobre questões de igualdade de gênero, parece um tanto quanto batido, afinal, esse assunto borbulha em todos os lugares. Haja vista, que a propagação dessa questão pela internet fortaleceu em muito a ideia de respeito às diferenças.
Esse pensamento não advém do hoje, foi construído de forma gradual e dura, principalmente, no que diz respeito à questão feminina. Quando se pensa nas primeiras manifestações em defesa do direito da mulher, como ser social e racional, há dois nomes que se destacam: Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, duas representantes de peso, consideradas as avós do que hoje chama-se: feminismo1.
Dentro desse contexto, surge a autora Jane Austen. Ela conseguiu traspor, em seus textos, a questão citada de forma leve, irônica, divertida e racional. Mais tarde, seria considerada uma das grandes romancistas do mundo, com apenas seis obras publicadas e o seu nome está entre os mais influentes do ramo. Austen é uma das maiores escritoras de todos os tempos.
A obra proposta para análise é considerada um dos exemplares mais lidos em todo o mundo e apresenta um estilo único, carregado de sarcasmo, que traz reflexões sobre o papel da mulher em uma sociedade bitolada.
Isso posto, essa pesquisa propõe um entrelaço entre a literatura e a linguística através da Análise do Discurso da obra Orgulho e Preconceito (1813) da autora inglesa. O tema tem como enfoque analisar discursivamente um texto literário, sobretudo a ideologia feminista presente no livro.
O contexto do escrito é: a burguesia inglesa dos séculos XVIII/XIX, período em que os casamentos eram uma forma de ascensão social.
Justifica-se a escolha desta obra pela sua personagem central possuir um alto nível discursivo, ser detentora de uma personalidade marcante e acreditar na igualdade de gênero. O estudo torna-se significativo tanto para o ensino de língua, quanto para a literatura.
A problemática está embasada em uma pergunta: como a linguagem empregada no livro Orgulho e Preconceito instrumentalizou a fala protofeminista do século XIX? Desta forma o objetivo geral consiste em evidenciar as ideologias que
1 O termo sempre representou polêmica, mas o feminismo que se propõe na pesquisa, pode ser considerado feminismo tradicional, que visava questões básicas como: herança para as mulheres, escolha do próprio companheiro, entre outros.
Jane Austen traz em seu livro, com foco no Ethos discursivo presente em sua personagem principal.
Esta pesquisa foi dividida em três partes, a primeira, relata o meio onde Jane foi criada, o objetivo maior deste capitulo é: contextualizar no tempo e espaço da autora com a finalidade de descobrir como sua vida pessoal interferiu no seu discurso; já a segunda parte relaciona a Análise de Discurso e Ethos discursivo com o intuito de demonstrar como estes podem auxiliar na compreensão da obra em questão. A terceira e última parte materializa-se como análise do Corpus, que objetiva traçar o discurso de Jane como defensor da liberdade opinativa da mulher assim como evidenciar o Ethé de sua protagonista. A metodologia adotada caracteriza este estudo como dedutivo, bibliográfico, com abordagem qualitativa e de caráter exploratório
A fundamentação teórica que sustenta a análise do romance concentrar-se-á na teoria enunciativo-discursiva de Dominique Maingueneau (1996, 1997, 2013), quanto à abordagem linguística, bem como nos estudos de Bakhtin (1997, 2011), Brandão (2008), Orlandi (1997, 2001, 2002) Sobral (2009), Lacan (1985), Pêcheux
(1988), Citelli (1999), Ducrot (1972), Brait (2013) Serena (2013.
Desta forma, esta pesquisa se faz importante por entender como as conquistas em relação ao gênero feminino foram traçadas desde seus primórdios, Austen, foi uma das pioneiras no movimento feminista, afinal, em um tempo onde as escritoras usavam pseudônimo de nomes masculinos, ela encarou a sociedade e vendeu seus livros com o seu verdadeiro nome, escrevia suas obras com o foco em mulheres fortes, suas famosas heroínas, seres racionais capazes de pensar e criar opinião por si próprias.
A ideologia da escritora, mesmo que implícita em seus textos, foi lida e refletida por milhares de mulheres, pois a linguagem que ela usava caracteriza-se como persuasiva, capaz de dar início ao movimento psicológico de autorreflexão das senhoras do período, principiando a quebra do muro machista e trazendo à tona a questão de igualdade de gênero.
“Os homens tomaram todas as vantagens sobre nós ao poderem escrever sua própria história. A educação deles tem sido muito melhor que a nossa, a pena está nas mãos deles, e não permitirei que os livros provem nada (a respeito das mulheres) “ (JANE AUSTEN, 2016, p. 54)
O corpus desta pesquisa, Orgulho e preconceito, foi escrito entre os séculos XVIII e XIX, período de grandes mudanças na Inglaterra, bem como na Europa. Para entender como Jane Austen elaborou o discurso presente no livro, é preciso compreender seu universo, como suas relações eram travadas, qual sua inspiração, e pessoas importantes neste processo. Diante disso, esta seção dedicar-se-á a tecer essas linhas.
Jane Austen foi uma típica moça inglesa que sempre morou com a família em um ambiente fechado e, de certa forma, obscuro. Ela pertencia a gentry da Inglaterra, ou seja, a nobreza rural, que era um pouco menos privilegiada, sem grandes posses de terra. Viveu entre o final do século XVIII e o começo do século XIV, em um país dominado pelo puritanismo que
foi um movimento religioso muito influente na Inglaterra, tendo posteriormente se tornado a principal tradição religiosa dos Estados Unidos da América, enfatizou a pureza e integridade do indivíduo, igreja e sociedade. Lutava pela purificação da igreja, descartando elementos arquitetônicos, litúrgicos e cerimoniais conflitantes com a simplicidade e “pureza” bíblica. (SILVESTRE, 2003, s/p)
O puritanismo era muito presente no universo de Jane, até porque seu pai, George Austen, era uma espécie de pároco da Igreja Anglicana de Hampshire e foi nesse meio acanhado que ela começou a demonstrar seu talento para as letras. Embora sua família fosse pobre, tinha um amplo contato com a aristocracia inglesa.
Na Inglaterra, o período era de pós-revolução Industrial, o país encontrava-se em plena expansão colonialista e o resultado de tudo isso, era a transformação na primeira potência capitalista do mundo ocidental. As pessoas começaram o processo de migração do campo para a cidade com a finalidade de trabalhar nas indústrias, recentemente instaladas. Assim, formaram uma nova classe social: o proletariado.
O romance em análise tem como pano de fundo o campo e as relações que ali se estabeleciam. É interessante ressaltar que o espaço físico é representado pela autora como um lugar vazio, embora existissem ligações entre as propriedades, observa-se a ausência de pessoas. Isso produz um silêncio significativo que aponta ser algo que não foi indicado pela romancista
A Europa, nessa época, era marcada por transformações econômicas, políticas e sociais, tais como o Iluminismo e a Revolução Francesa, que produziam discussões sobre o novo papel do homem, capazes de fomentar as novas concepções. Assim, surgiu a ideia de liberdade e igualdade.
Foi exatamente aí que emergiram os primeiros movimentos e protestos femininos. As mulheres “foram às ruas e se movimentaram no cenário da Revolução, ocuparam novos espaços e estiveram na linha de frente de inúmeras manifestações públicas do final do século XVIII” (COSTA, 2007, p. 36), essa manifestação ficou conhecida como a Marcha de Mulheres de Versalhes e marcou o início do Protofeminismo2.
O período era de mudanças de comportamento e pensamento e o foco da obra em seu enredo, são as nuances das relações baseadas na instabilidade pela qual Inglaterra passava — embora não reconhecida pelo governo. Segundo Burgess (1996, p. 209):
O interesse primordial de Jane Austen está nas pessoas e seu êxito reside na apresentação meticulosamente exata das situações humana, no delineamento de personagens que são efetivamente criaturas vivas, com defeitos e virtudes, tal como na vida real!
Era um momento de puro egoísmo e as pessoas convergiam para o ridículo. Jane trata todas estas questões a partir do ponto de vista do indivíduo. As críticas, mesmo que não ditas, estão na construção da narrativa.
A época era de transição de valores em que o nascimento do próprio romance inglês é configurado. O universalismo passa a ceder lugar a um pensamento mais individualista, típico da sociedade burguesa, e as particularidades passam a ser mais valorizadas. Por isso suas personagens têm defeitos e virtudes bem expostas pelo narrador. Mas ao mesmo tempo, levando em consideração o universo em que os romances são situados (pequena cidade inglesa), ainda prevalece um pensamento comum. Um exemplo fica claro quando se observa o comportamento da Sra. Bennet, e é como se as particularidades de cada membro da comunidade fossem reduzidas. Constrói-se, assim, uma uniformidade de valores na sociedade e uma crítica à sociedade inglesa em geral. (MACEDO, 2014, s/p).
2 Conceito utilizado para definir o feminismo anterior ao século XX, quando o conceito ainda não era usado.
É exatamente nesse entremeio que a romancista tece seus romances, com uma visão apurada da sociedade de seu tempo, censurando os hábitos vaidosos e extravagantes presentes na sociedade.
O livro não trata apenas de uma história de amor, mas da forma de enxergar as atrocidades cometidas e sofridas pelas pessoas cujo intuito, era de ascender socialmente.
Tudo é retratado a partir da ironia refinada da autora, que evidencia o ridículo, não só da pequena cidade onde morava, mas de toda a sociedade europeia. Exibe assim, os moldes nos quais os indivíduos se colocavam.
Para Canton (2016, p.118): “Austen enfatiza as vulgaridades e frivolidades dos estranhos e superiores ingleses: a importância de classe, o estigma da inferioridade social e o sistema patronal são encenados por meio de bailes, visitas e fofocas. ”
Orgulho e Preconceito é mais que um romance, é um documento histórico, filológico que deixa explícito o tipo de seres humanos da época, especialmente na transição do século XVII para o XIX, conforme Lúcio Cardoso fala:
No ano de 1813 aparece finalmente Orgulho e preconceito, onde é minuciosamente estudada a sociedade daquele tempo, a mediocridade dos seus tipos, o ridículo dos seus hábitos, a vaidade e a tolice de burgueses e nobres que o preconceito separava. Rigorosamente construída, antes de mais nada essa obra era a prodigiosa revelação do temperamento de uma romancista. Nada escapa ao seu lúcido olhar, nenhuma fraqueza, nenhum ridículo dessa gente que ela conhecia tão bem. (CARDOSO, 2010, p. 9).
Cardoso ainda ratifica a genialidade da autora e seu arrojo ao tratar desses temas, até então ignorados. A sua inspiração nasceu na literatura popularesca e no teatro, muito presentes em sua vida. A família, além de ter o costume de encenar pequenas peças teatrais, tinha também um contato direto com a burguesia local. A escritora observava seus hábitos e costumes e a partir deles formulava suas personagens, baseados em uma lógica do próprio meio social.
Jane Austen foi uma das autoras de maior destaque de todos os tempos, cujas obras demonstram uma perspicácia que contribuiu para modificar o pensamento de sua geração e das gerações subsequentes.
Assim como suas personagens Jane, nasceu no interior da Inglaterra, aos 16 de dezembro de 1775, mais precisamente no distrito Steventon, propriedade paroquial que ficava no comodato de Hampshire; foi a sétima de oito irmãos. Filha do reverendo George Austen e de Cassandra Austen, dona de casa. Ela teve uma educação familiar até os 8 anos, quando ela e a também Cassandra, sua irmã mais velha e melhor amiga, passaram a morar e estudar na cidade de Southampton. Em 1785, ambas transferiram-se para Reading, num internato. Ali Jane se inspirou e descreveu o internato da senhora Goddard, retratado no romance Emma. Nele é possível perceber que Austen registrava o vivido e visto, durante os anos de internato.
A família da autora dispunha de notável biblioteca, não por acaso, era o lugar onde ela mais vivia. Foi nesse local que adquiriu o gosto pela leitura e pela escrita. Aos 17 anos já mostrava destreza.
O contato com a literatura aconteceu ainda muito cedo. O pai de Jane era um ávido leitor de romances e, por isso, possuía muitas obras dentro de casa. O reverendo sempre instigou a leitura e a escrita em todos os seus filhos, mas ele percebeu desde cedo que uma de suas filhas tinha um grande dom. Durante a adolescência, a jovem escreveu algumas obras para divertimento da família e sem grandes pretensões, como Love and Freinship (sic), de 1790. Em 1803, Jane conseguiu vender o seu primeiro romance pelo valor de 10 libras esterlinas, o Northanger Abbey. Porém, ele só foi publicado 14 anos depois. (MACEDO, 2014, s/p)
Em 1792 escreveu uma história cômica, sem nenhuma presunção de publicação: Kitty or the Tower, nessa mesma época, seu senso crítico já era aguçado, o que demonstrou, posteriormente, ao escrever a sua primeira novela: Lady Susan, onde expõe as relações pessoais inerentes àquele tempo.
A prática de redigir com destreza foi então se aprimorando e, em 1795, Jane com quase 20 anos, concluiu sua primeira novela em estilo epistolar. Esta novela foi inspirada por Johan Wolfgang von Goeth, autor da obra: O sofrimento do jovem Werther. A novela ganhou inicialmente o nome de Elinor and Marianne, que após uma revisão transformou-se no sucesso - Razão e Sensibilidade.
A grande inspiração da literata foi a convicção baseada no que via, pois escrevia sobre o coração, sobre vícios e costumes, sobre o casamento por interesse e sobre a aparência. É correto, portanto, afirmar que ela tinha uma grande sensibilidade para observar as questões do corpo social narcisista em que estava
inserida. Além dessas questões, pesquisadores defendem que o livro Orgulho e Preconceito, registra a experiência vivida na juventude: o grande amor por Tom Lefroy.
No inverno de 1796, Jane conheceu Thomas Langlois Lefroy, um jovem irlandês de 20 anos (mesma idade que a autora na época) que supostamente foi o grande amor de sua vida. Ele visitava seus tios, o reverendo George Lefroy e Anne Lefroy na Reitoria de Ashe, sul da Inglaterra, de quem dependia financeiramente. Em contrapartida, Tom devia seguir à risca as expectativas da família: perseguir um status elevado e casar-se bem.
Havia uma grande amizade entre as famílias: Lefroy e Austen. Miss Jane, apesar de mais nova, era grande amiga da Sra. Lefroy- tia de Tom. A amizade de Thomas e Jane se transformou em um sentimento maior. Não existem provas consistentes sobre o amor entre eles, apenas algumas cartas enviadas a sua irmã Cassandra, Austen faz referência a esse possível romance.
Seguem alguns trechos das cartas que demonstram esse fato:
Você ralhou tanto comigo nesta longa e deliciosa carta que acabo de receber, que estou quase com medo de lhe contar como eu e meu amigo irlandês nos comportamos. Imagine você tudo de mais libertino e chocante na maneira de dançar e sentar juntos. Entretanto eu posso expor-me mais uma vez, pois ele deixará o país logo depois da próxima sexta-feira, dia no qual nós teremos uma dança (baile) em Ashe. Ele é um rapaz muito educado, bonito, um jovem agradável posso assegurar isso para você. Mas tendo jamais nos encontrado antes, exceto no último três bailes, eu não posso dizer muito; ele foi motivo de muitas risadas em relação a mim em Ashe tanto que ficou envergonhado de vir até Steventon e fugiu quando nós fomos fazer uma visita para a senhora Lefroy [em Ashe] poucos dias depois (AUSTEN, 1796, s/p).
Nessa parte, ela relata sobre os encontros com o jovem, e resgata assim, o costume citado no livro em análise, ou seja, apenas nos bailes era possível um contato maior entre os pares, pois podiam conversar sem o controle da família que vigiava o casal. Ao que tudo indica, Jane flertou com ele, mesmo conhecendo-o pouco.
Atenta-se ao fato que Jane era recatada e não expunha seus sentimentos, logo o que Tom significava de fato, não está muito claro. Talvez a personagem Jane Bannet de sua obra prima, tenha sido inspirada pelo próprio sentimento da autora. A moça da ficção mal revelava o sentimento para sua irmã Lizzy, tal qual a autora. É possível observar também o comentário feito à Cassandra que teria apenas mais um baile para se “expor” às maledicências do povo de Hampshire acerca de seu comportamento
com Thomas. Até porque o boato de um suposto romance entre eles espalhou-se, e Tom foi motivo de chacota pela população local.
Em Orgulho e Preconceito, fica evidente que cabia às moças trocar de parceiros durante o baile, caso contrário, ficariam comprometidas. Jane Bennet, por exemplo, foi tida como noiva de Mrs. Bingley por ter dançado mais de duas vezes com ele. Por isso, Mrs. Collins dançou as duas primeiras músicas com Eliza, pois, pretendia casar- se com ela.
Jane estava apaixonada por Tom, porém receava demonstrar seus sentimentos, talvez pelo nível social elevado ou formação intelectual, haja vista que ele era quase um jurista e esperava-se dele um bom casamento nos aspectos financeiro, social e na questão da nobreza. Ela, ao contrário dele, era plebeia e não possuía grandes bens, embora sonhasse com uma aproximação maior. Isso se evidencia na carta enviada à irmã: “eu aguardo com impaciência por isto [o baile], já que espero muito uma oferta de meu amigo no decorrer da noite. Eu recusarei, entretanto, a menos que ele prometa desfazer-se de seu casaco branco. ” (AUSTEN, 1796, s/p)
Eles mantiveram um bom relacionamento, com direito a visitas, cartas, danças em bailes, dentre outros. Há relatos de que os dois tentaram conversar com o tio de Thomas, mas ele recusou o romance, pensaram até em fugir, mas o moço desistiu pelo fato de ficar sem o auxílio financeiro do seu tutor. Desta forma é possível compreender por que a literata era tão “inconformada” com a realidade que os matrimônios deviam prosseguir no século XVIII, como se fossem um negócio, pois ela mesma vivenciou isso.
Lefroy regressou à Irlanda e ficou noivo de Mary Paul cerca de um ano depois, a família da moça era influente e afortunada. Em outra carta enviada a Miss Austen, Jane deixa claro a dor que sentia por perder seu amado: “Finalmente é chegado o dia no qual flertarei pela última vez com Tom Lefroy e quando você receber esta, tudo estará acabado. Minhas lágrimas correm enquanto escrevo diante da melancolia desta ideia. ” (AUSTEN, 1796, s/p).
Mas Jane não o esqueceu. Ele regressa a Ashe três anos depois do primeiro contato deles, em 1799, porém ao que tudo indica, manteve-se afastado da família Austen. Em uma carta enviada à Cassandra, em 1798, a jovem confessa a irmã que Sra. Lefroy os visitou, mas ela não teve coragem de perguntar sobre seu amor: “Eu era demasiado orgulhosa para fazer qualquer pergunta; mas depois do meu pai
perguntar onde ele estava, fiquei a saber que tinha voltado para Londres, no seu caminho para a Irlanda, onde foi chamado à "barra" e pretende praticar. ” (AUSTEN, 1798).
A autora reconhece seu orgulho diante de tal situação, eles nunca mais se viram. Thomas tornou-se um jurista renomado chegando ao cargo de Juiz do Supremo Tribunal de Justiça da Irlanda, teve oito filhos sendo que a primeira filha mulher recebeu o nome de Jane. Estudiosos afirmam que o nome, seria uma homenagem a sua paixão de juventude.
Jane nunca conseguiu esquecer Tom Lefroy, e a dor que sentiu, o que alimentou sua genialidade ao escrever suas composições. Em um trecho de sua obra Persuasão, em 1816, fica claro o que ela pensava sobre o coração partido, deixando uma leve crítica à diferença entre homens e mulheres nesse âmbito:
Nós mulheres não vos esquecemos, não tão cedo como vocês nos esquecem a nós... este é o nosso destino, mais do que mérito. Não podemos controlar. Vivemos em casa, quietas e confinadas, e os nossos sentimentos ocupam- nos... Vocês tâm sempre as vossas profissões, objectivos, negócios ou outros, que vos levam de novo para o mundo, e a ocupação contínua e a mudança depressa afastarão os pensamentos (AUSTEN, 2016 p, 18).
A escritora teve seu coração partido pelo fato de viver em uma sociedade materialista que prezava, acima de tudo, o dinheiro. Ela se recusava, assim como suas personagens, o casamento sem amor, rejeitando o único pedido feito a ela por um homem. Teve sua felicidade negada, devido ao preconceito da família de seu amado, ou até mesmo, pelo seu próprio orgulho que a impediu de ter um final feliz.
O que Jane Austen, romancista, cujo eixo central, à primeira vista, de suas obras era o casamento, tem a ver com a avó do feminismo moderno a filosofa Mary Wollstonecraft? Grosso modo: nada. Mas isso é um ledo engano! Ambas advêm do século XVIII e foram fundamentais para os primeiros pensamentos acerca do empoderamento feminino3.
3 Ato de conceder o poder de participação social às mulheres, garantindo a ciência sobre a luta pelos seus direitos.
As duas viveram na mesma época e apesar de oficialmente não se conheciam, pesquisadores afirmam que Austen sabia sobre o trabalho de Wollstonecraf. A linha de pensamento de Mary é conhecida pelo desdém ao casamento, especialmente na sua obra mais conhecida Vindication of the Rights of Woman (Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher) uma análise estridente e indignada do sistema educacional da época que enfatizava o papel subalterno da mulher e de como elas eram mantidas em um estado de dependência. Jane Austen, por sua vez, traz em seu livro: A Abadia de Northanger, uma referência ao tema:
Sobretudo a mulher, quando tem a desgraça de conhecer alguma coisa, deve escondê-lo o máximo possível. Embora para a maior e mais frívola parte do sexo masculino a imbecilidade aumente em muito os encantos pessoais femininos, há uma parte deles, razoável e bem informada, que deseja algo mais na mulher do que a ignorância. (AUSTEN, 2012, p.42).
Aqui, a autora faz uma crítica, aos livros e regras de etiqueta do século XVIII, que orientavam as moças a ocultarem quaisquer indícios de conhecimento perto dos homens, para não os intimidar. Austen também era uma protofeminista formidável, com a voz mais suave e críticas não ditas, ela estava ciente das limitações que a sociedade impunha às mulheres.
Mary e Jane discorriam em seus textos, de diferentes gêneros, temas iguais: mulher e família. E em seu contexto histórico, Austen aparenta ser bem mais realista, sabia que a vida é dura, particularmente, para as mulheres e mais ainda para as que não se casaram, e eram assim um “peso” para a família. Porém, não se detinha apenas a abordar como as restrições da sociedade poderiam levar alguém a questionamentos psicológicos tão cruéis, mas como as habilidades de raciocínio poderiam auxiliar as mulheres na sua sobrevivência.
Já Wollstonecraft era árdua defensora de uma ideologia ainda mais radical para seu tempo: de que mulheres e homens eram capazes de fazer escolhas racionais. Um bom exemplo disso é sua obra: A reivindicação dos direitos da mulher, escrito em 1792, trata-se de um apelo aos direitos da mulher depois que a nova constituição francesa,1791, deu aos homens o direito de cidadania.
Ora, como os pensamentos de Jane Austen e Mary Wollstonecraft assemelhavam-se? Em uma leitura atenta, percebe-se que as duas percebiam na sociedade de então, o casamento como instituição econômica mas entendiam as mulheres que as mulheres eram criaturas racionais e podiam pensar por si mesmas.
Ante a essa identificação de ideais acredita-se que Jane conhecia o trabalho da filosofa, sobre isso Jasper discorre:
A biografia de Austen, Claire Tomalin, oferece algumas evidências biográficas convincentes de que Austen provavelmente conheceu Mary Wollstonecraft e seu trabalho. Ela observa que Sir William East, pai de um dos ex-alunos de George Austen, foi um benfeitor de Wollstonecraft. Além disso, Sir William era um vizinho e amigo do tio de Austen, James Leigh-Perrot. Depois que Wollstonecraft tentou suicidar-se em 1796, Sir William foi creditado por ser particularmente amável com ela durante a sua recuperação. Embora isso não ligue especificamente Austen e Wollstonecraft, torna plausível que a família Austen conhecesse Wollstonecraft e suas idéias (JAPER, 2012, s/p).
É provável que Miss Jane não tenha feito nenhuma referência a Mary por receio de represálias, afinal, o nome de Mary Wollstonecraft era facilmente vinculado ao de Olympe de Gouges exímia mulher responsável pela elaboração da obra: Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, que fez com que seus dizeres fossem um marco na história do protofeminismo: “a mulher possuí direitos naturais idêntico aos dos homens e por isso tem o direito de participar indireta ou diretamente da formulação das leis e política” (GOUGES, 1791, s/p).
Como Austen era uma moça de família, filha do clérigo de sua cidade, apesar de compactuar das ideologias de Mary, preferiu ficar com o silêncio de seu conhecimento acerca da mesma, mas, utilizou o que aprendeu com a protofeminista nos seis romances que produziu, sua ideologia centrava-se nas ideias compostas por Wollstonecraft.
Diante de tudo isso é correto afirmar que as autoras partilhavam das mesmas indignações, elas acreditavam que ninguém “nasce” mulher, se mas torna mulher devido ao resultado do meio, sendo assim atenta-se que ambas foram primordiais para o movimento protofeminista.
“Só há ideologia pelo sujeito e para sujeitos ” (PÊCHEUX, 1988, p.149)
O corpus desta pesquisa, Orgulho e preconceito, apresenta relevância na literatura mundial e sua personagem principal destaca-se devido ao alto nível discursivo que dispõe.
Considerada a obra, como pertencente ao campo da literatura, propõe-se a análise do discurso, o que permite entrelaçar literatura e linguística, enfoques geralmente trabalhados de forma desagregada, mas que possuem um bem comum: a língua. Sobre isso Serena (2013, p. 38) diz: “a obra literária pode ser vista, ou entendida, integrada aos estudos linguísticos, uma vez que a literatura, sua narrativa, constitui-se no discurso e é no discurso que a escrita consagra a literatura”.
Em todas as esferas, o ser humano encontra-se em permanente processo comunicativo, seja por meio das redes sociais, ligações, conversas despreocupadas ou reunião de negócios: o uso da língua está presente em toda a atividade humana.
O enunciado surge dessa interação, o simples fato de dizer algo destinado a outro ser com um determinado objetivo, caracteriza-se como um acontecimento discursivo, esse processo é denominado enunciação. Conforme Brait (2013, p. 63),
O enunciado é [...] concebido como unidade de comunicação, como unidade de significação, necessariamente contextualizada. Uma mesma frase realiza- se em um número infinito de enunciados, uma vez que esses são únicos, dentro de situações e contextos específicos, o que significa que a “frase” ganhará sentido diferente nessas diferentes realizações enunciativas.
Os enunciados dividem-se em: orais ou escritos e revelam as condições específicas e as finalidades na construção discursiva (escolha lexical, temática, estilo da linguagem) para que haja uma troca comunicativa entre enunciador e coenunciador. Por meio do enunciado pode-se representar fatos, pois é a razão da relação entre a língua e o mundo, contudo ele “constitui por si mesmo um fato, um acontecimento único definido no tempo e no espaço”. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 193).
O Conteúdo temático, o estilo e a composição organizacional fundem-se e formam o todo da enunciação e são marcados pela especificidade do ato da comunicação, pois “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. ” (BAKHTIN, 2000, p. 279).
Mikhail Bakhtin em seu livro Estética da criação verbal apresenta os gêneros do discurso com uma riqueza de infinitas possibilidades, considerando que cada atividade humana pressupõe uma gama de gêneros do discurso, ampliada a medida que a própria atividade desenvolve e fica mais densa. Ele define os gêneros discursivos como “heterogêneos” e subdivide em primários e secundários.
Os gêneros primários demonstram-se triviais, como a conversa, a lista de compras do supermercado, um telefonema, dentre outros. Têm relação com o contexto imediato, desta forma, pertencem à comunicação verbal espontânea – todavia não são predominantes da oralidade. Já os gêneros secundários pertencem à esfera da comunicação cultural mais estruturada, como o romance, a autobiografia, o discurso político, o editorial, entre outros. A predominância nos gêneros secundários é a escrita, mas não exclusivamente – por exemplo, o discurso político e o sermão acontecem na oralidade assim como na escrita, são igualmente complexos nos dois âmbitos.
O corpus desta pesquisa é pertencente ao gênero do discurso secundário, ao referir-se a este gênero, é necessário considerar o estilo, a temática e a composição organizacional do texto: o estilo corresponde a escolha lexical, gramatical e fraseológica, a temática refere-se ao domínio de sentido de que se ocupa o gênero, utiliza o exemplo de cartas de amor que, consequentemente, apresentam temática das relações amorosas; a composição textual diz respeito à organização e estrutura do texto de acordo com seus respectivos gêneros – a carta, o contrato de compra e venda de um imóvel, e a crônica, por exemplo.
Na obra Orgulho e preconceito, objeto deste estudo, estes elementos aparecem na composição da narrativa por meio do romance (composição textual); a temática é focada na personagem central Elizabeth Bennet e na sua relação com Sr. Darcy, fazendo jus ao título do livro, e o estilo que Jane Austen escolhera para escrever, seria o que mais tarde chamar-se-ia de: discurso livre indireto.
A autora produziu alguns recursos enunciativos, específicos, não utilizados até então, que transformariam no Discurso Livre Indireto. Essa tipologia de discurso
consiste em: acontecimentos narrados ao mesmo tempo, não havendo ramificações entre a fala das personagens e a do narrador. Guancho (1997, p. 39) afirma que esse tipo de discurso “consiste num meio-termo entre o discurso direto e o discurso indireto, porque apresenta expressões típicas do personagem, mas também a mediação do narrador”.
Para tanto, Maingueneau (1997, p. 97) afirma que ele
se localiza precisamente nos deslocamentos, nas discordâncias entra a voz do enunciador que relata as alocuções e a do indivíduo cujas alocuções são relatadas. O enunciado não pode ser atribuído nem a um nem a outro, e não é possível separar no enunciado as partes que dependem univocamente de um ou de outro.
O discurso livre indireto cria um elo entre o discurso citado e o discurso que cita, o enunciador apresenta-se onisciente em todos os momentos e em todas as falas, ele é presente no consciente e no inconsciente de seu personagem confundindo-se com o seu próprio ato ideológico.
Outro artifício usado pela autora é a ironia. Ela é um importante item dentro da expressão literária, é o fato do enunciador dizer algo contrário do que realmente pensa. Sócrates já explanava o conceito, e segundo Kiekegaard (1991, p. 47), o filosofo defendia que “a ironia é uma professora temida apenas por aqueles que não a conhecem, mas festejada por aqueles que a conhecem. ”
Todavia, a ironia pode ser perigosa nas mãos daqueles que não entendem o verdadeiro funcionamento desta ferramenta, posto que “os problemas ligados à identificação da ironia nada têm de acessório: efetivamente, é da essência da ironia suscitar as ambiguidades e, com frequência, a interpretação não consegue resolvê- la. ” (MAINGUENEAU, 1997, p. 99). Ela pode transformar-se em um “ruído” dentro do texto devido ao simples fato do coenunciador não conseguir entender ou compreender esse fenômeno, sendo que aqui, o texto assume sua incompletude.
Para tanto, Maingueneau (1997, p. 99) afirma que a ironia é
um fenômeno sutil, passível de analises divergentes e cuja extensão é difícil de circunscrever, por menor que nos afastemos de exemplos simples particularmente, não é possível considerar antifrásticos todos os enunciados que, de hábito, são taxados de ‘irônicos’).
A ironia é item fundamental na construção ideológica do enunciado que Jane Austen profere, é através dela que se estrutura a crítica socioeconômica e protofeminista, enunciada pela personagem principal Elizabeth Bennet.
Nesta seção trabalhar-se-á a noção de discurso e Ethos discursivo, fundamentais para a construção da obra de Jane Austen; conceitos relevantes para o entendimento de como a análise do discurso pode nos ajudar a captar as mensagens ocultas no corpus desta pesquisa.
Antes de entender o que é o Ethos Discursivo, deve-se saber o que é discurso, segundo Orlandi (2001, p.15),
[...]. É a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: como o estudo do discurso observa-se o homem falando.
É através do discurso que os pensamentos são exteriorizados, mesmo que um texto se apresente opaco, ele conterá uma convicção em sua sustentação. Para Lacan (1985, p. 45) o “discurso é o laço social baseado na linguagem”, é através dele que o a língua faz sentido. Os estudos discursivos veem a língua como acontecimento não separando a forma do contexto, assim sendo, a bagagem que o autor traz repercute diretamente no enunciado que ele elabora; por que escreveu x e não y, isso acontece, pois, a ideologia se materializou na linguagem – questão da falta de neutralidade.
A produção de sentido está intimamente ligada ao discurso e é nesse movimento que o indivíduo constrói sua identidade, afinal, a “construção de sentido junta-se à da constituição do sujeito” (PÊCHEUX, 1988, p.154 -155). A língua produz significado por essa interação, “O significado não é aquilo que se ouve. O que se ouve é significante. O significado é efeito do significante” (LACAN, 1985, p. 47). O significado é efeito do que ouve ou se lê.
Partindo desses conceitos, torna-se pertinente, considerar o modo de enunciação presente na personagem central, Elizabeth Bennet. Inicialmente, é preciso conceituar o que é Ethos. Maingueneau (2011, p. 12) afirma que
um dos maiores obstáculos com que deparamos quando queremos trabalhar com a noção de ethos é o fato de ela ser muito intuitiva. A ideia de que, ao falar, um locutor ativa em seus destinatários uma certa representação de si mesmo, procurando controlá-la, é particularmente simples, é até trivial.
Segundo a retórica de Aristóteles, embora não seja este o viés que embasará a pesquisa, o Ethos consiste em o enunciador influenciar a plateia de forma positiva, através da persuasão que se dá pelo caráter. Para isso o tom de voz, o ritmo da fala, a escolha de palavras e de argumentos, os gestos, as expressões faciais, o olhar, a postura, as atitudes são mobilizadas para que o discurso seja legitimado, conforme Maingueneau (2009, p.13),
A prova pelo ethos consiste em causar boa impressão pela forma como se constrói o discurso, a dar uma imagem de si capaz de convencer o auditório, ganhando sua confiança. O destinatário deve, então, atribuir certas propriedades à instância que é posta como fonte do acontecimento enunciativo.
Essa noção está ligada a própria enunciação, e a sua eficácia apresenta-se ao envolvê-la sem que seja explícito no enunciado: “se está diretamente relacionado ao ato de enunciação, o público constrói representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale ” (MAINGUENEAU, 2008, p. 12).
Estabelece-se, assim, o ethos discursivo e o ethos pré-discursivo. O discursivo subdivide-se em Ethos dito – o enunciador apresenta imediatamente suas características, enfatizando ser aquela ou esta pessoa e “vai além da referência direta do enunciador a sua própria pessoa ou a sua própria maneira de enunciar (‘eu sou um homem simples’, ‘eu lhes falo como um amigo’, etc.)” (MAINGUENEAU, 2008, p. 80) – e Ethos mostrado – o enunciador não se apresenta de forma direta, porém é reconstruído através de sinais ou marcas fornecidas no discurso; o pré-discursivo, por sua vez, refere-se à imagem que o coenunciador faz do enunciador antes mesmo que este fale.
O Ethos é um efeito de discurso, e supõe delimitar o que vai decorrer do próprio. Mas isso é muito mais evidente para um texto escrito do que numa situação de interação oral, conforme Aristóteles propunha.
O papel deste é crucial, tanto na perspectiva do autor, quanto na do leitor, o último, por sua vez, identifica-se com “a movimentação de um corpo investido de valores historicamente especificados” (MAINGUENEAU, 2008, p. 73). Ao ler um texto, os indivíduos apropriam-se do Ethos, esse processo é denominado de incorporação. Esta, por sua vez, recai na excelência do discurso e sua persuasão, para tanto,
o coenunciador interpelado não é apenas um indivíduo para quem se propõem “ideias” que corresponderiam aproximadamente a seus interesses; é também alguém que tem acesso ao “dito” através de “uma maneira de dizer” que está enraizada em uma “maneira de ser”, o imaginário de um vivido. (MAINGUENEAU, 1997, p. 48,49).
O dizer, mesmo que não intencional irá incutir nas mentes dos leitores e quando este é intencional, chama-se: Discurso Persuasivo. Sobre ele Citelli (1999, p. 35), discorre: ” [...] o discurso persuasivo é sempre expressão de um discurso intencional. As instituições falam através dos signos fechados, monossêmicos, dos discursos de convencimento”.
Conforme o autor propunha, o discurso persuasivo é intencional, ele possui um destino certo e preciso, utiliza diversas ferramentas para sustentá-lo. Desta forma afirma-se que não há discurso neutro, ele sempre conterá as concepções de quem o profere, sendo então, a neutralidade dentro da sentença uma utopia.
O Ethos demonstra-se fundamental para o entendimento do corpos desta análise, devido ao fato de se apresentar como recurso fundamental da escrita, é necessário compreender esta noção, pois ele é a ferramenta que Austen utilizou de maneira implícita e explícita, dentro da obra. Mesmo após 200 anos da morte da literata, o ethos continua desempenhando seu papel na vida da autora, pois quando se fala no nome Jane Austen não há dúvidas a respeito do bom trabalho que ela desempenhou, por exemplo, se fosse descoberto um novo livro seria fácil convencer as pessoas a lê-lo, os possíveis leitores já ficariam persuadidos a contemplar o escrito devido à credibilidade que Jane possui.
Esta pesquisa está pautada na análise linguística de uma obra literária, que dar-se-á através do viés dá AD4, para tanto, algumas teorias tornam-se pertinentes para o maior entendimento do texto. Isso posto, o embasamento teórico acerca da
A.D será levantado nesta seção.
4 AD refere-se à abreviação de Análise de Discurso.
Análise de Discurso é uma área da linguística relativamente nova, teve seus estudos, iniciados em 1970, pelo filosofo francês Michel Pêcheux, e trata a linguagem de maneira particular, não se refere à língua ou à gramatica, embora sejam aspectos relevantes, mas aborda o discurso e como ele constrói seu sentido.
O objetivo da AD não é procurar a verdade inserida no texto, mas compreendê- lo isso se dá através da linguagem empregada, pois e ela que começa a produzir sentido. Para Orlandi há três pontos fundamentais dela:
Partirei de três pressuposto: a. não há sentido sem interpretação; b. a interpretação está presente em dois níveis: o de quem fala e o de quem analisa, e c. a finalidade do analista do discurso não é interpretar mas compreender como um texto funciona, ou seja, como um texto produz sentido (ORLANDI, 2001, p. 19).
Observa-se que a interpretação é parte importante dentro da AD, os sentidos só começaram a tomar forma a partir dela. Vale ressaltar que nem sempre a ideologia de quem escreve o texto será compreendida por quem o lê, afinal, a linguagem é uma espécie de paráfrase dos pensamentos e estes não conseguem ser exteriorizados por completo. Quem produz está exteriorizando sua ideologia (mesmo que inconscientemente), já quem lê está absorvendo o discurso do outro. Em uma sociedade de classes como a nossa, as convicções são predominantemente da classe dominante, pois essas usufruindo o poder5 dão sentido e nome às coisas.
A ideologia da classe dominante não se torna dominante pela graça do céu..., o que quer dizer que os aparelhos ideológicos de Estado não são expressão da dominação da ideologia dominante =, isto é, da classe dominante, mas sim que eles são seu lugar e meio de realização: é pela instalação dos aparelhos ideológicos de Estado, nos quais a ideologia é realizada e se realiza, que ela se torna dominante” (PÊCHEUX, 1988, p.144)
O discurso incorporará no leitor de alguma forma e juntara-se à ideologia já existente formando uma nova. Atenta-se, então, que há diferença de quem elabora o escrito e quem lê o mesmo, nesse caso, todos possuem ideologia. Isso posto, a análise de discurso interroga a interpretação, pois ela
5 Poder é colocado no contexto da comunicação.
ocupa assim esse lugar em que se reconhece a impossibilidade de um acesso direto ao sentido e que tem como característica considerar a interpretação como objeto de reflexão. Ela se apresenta como uma teoria de interpretação no sentido forte. Isto significa que a análise de discurso coloca a questão da interpretação, ou melhor, a interpretação é posta em questão pela análise de discurso. (ORLANDI,2001, p.21)
Haja vista que os sentidos não são uma questão fechada, a interpretação apresenta-se da mesma forma. Não há uma verdade a ser acessada no discurso, mas trilhas interpretativas com sentidos que estão abertos, e eles permanecerão assim durante o andar da história.
Neste contexto, o estudo discursivo mostra que a linguagem não é, ela está e é contextual na história, na ideologia, na organização social de um povo, sendo assim qual a validade de fazer a análise? Pois todos são sujeitos do discurso, interpretam de uma forma, são reféns das condições de produção. Para Orlandi (2001, p. 30)
Podemos considerar as condições de produção em sentido escrito e temos as circunstancias da enunciação: é o contexto imediato. E se consideramos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio- histórico, ideológico.
O contexto imediato caracteriza-se pelo suporte que o discurso está disposto, quem está lendo ou vendo, por exemplo. Já o contexto amplo refere-se a repercussão a longo prazo, o que o discurso provocará socialmente ou historicamente.
No livro Orgulho e preconceito, o contexto imediato caracteriza-se pelo livro impresso, já seu contexto amplo diz respeito as discussões e reflexões provocadas a mais de um século.
A construção de sentidos é um processo que não nasce do nada, vários são os aspectos que a compõe. Dentre eles, o não posto se faz de suma importância. É necessário atentar-se ao dito para que o não dito seja percebido- a ausência necessária, que age de forma crucial.
Dizer tem relação primordial com o não dizer, e esse campo está intimamente ligado a AD. Ducrot (1972) encaminhava sua linha de pesquisa considerando duas
formas do implícito6: o pressuposto e o subentendido. Pressuposto, faz parte da alçada da linguagem (não foi posto, mas está presente) e o subentendido se dá através do contexto.
Ao levantar os pressupostos presentes no discurso, reconhece-se sua incompletude. Para Orlandi (2001, p. 114):
O discurso é sempre incompleto assim como são incompletos os sujeitos e sentidos. [...] e os sentidos podem ser considerados como trajetos simbólicos históricos não terminados. A incompletude é o indício a abertura do simbólico, do movimento do sentido e do sujeito, da falha, do possível.
Não há enunciados definidos, prontos e concretos, eles passam sempre pelo mesmo círculo vicioso de (re)construção e (re)significação. Haja vista, que não existe um começo absoluto e/o ponto final, dentro dos estudos discursivos. Neste contexto, é importante ressaltar o papel do interdiscurso. Para Orlandi (2001, p.31):
Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é aquilo que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo o dizer e que retorna sob a forma do pré-constituído, o já-dito que está na base do dizível, sustentado cada tomada de palavras.
O sujeito é afetado pelo interdiscurso, o que já foi dito em algum lugar, em determinado tempo, tem efeito no hoje. As palavras não possuem donos, tampouco, são de propriedade particular, elas passeiam pelo espaço e pelo tempo, em um processo constante e perpétuo. Para produzirem sentido torna-se necessário que já tenham exercido este papel e caído no esquecimento, “é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras. ” (ORLANDI, 2001, p. 33-34).
É dessa relação (dito, não dito e interdiscurso) que a produção de sentido traça seu alicerce. Entre o escrito e o não escrito há um vai e vem ideológico, que obriga o interlocutor a questionar-se: “o que ele não está falando, quando está falando disso? ” (ORLANDI, 1996, p. 275).
Jane Austen, fez seu discurso baseado no não dito, mas entendido, essa foi a forma que ela encontrou de expor sua ideia, em um período turbulento, quando a
6 Não dito.
liberdade de expressão das mulheres praticamente não existia. Ducrot chamaria essa ferramenta utilizada pela romancista de Manobra estilística. Emprega-se esse termo quando:
a manifestação do conteúdo implícito repousa numa espécie de astúcia do locutor. Sabendo que o destinatário vai procurar as motivações possíveis do ato de enunciação realizado, e que se acreditar na honestidade desse ato, vai interrogar-se sobre as consequências dos fatos enunciados, o locutor procura trazer o destinatário para seu próprio jogo e dirigir-se à distancias de seus raciocínios (DUCROT, 1972, p. 22).
A autora sabia que não poderia tratar questões que fossem contra a forma de pensamento do governo, por exemplo. Ela joga com seus enunciatários, em um primeiro olhar, um livro sobre casamentos e amor. Uma olhada mais atenta, uma crítica bem fundamentada das normas regentes. Ela foi uma das pioneiras a usar recursos tão complexos.
Nessa perspectiva, o próximo capítulo destina-se à análise do corpus deste estudo, sobretudo da personagem principal, Elisabeth Bennet, considerando as teorias descritas neste capítulo.
A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. (BAKHTIN, 2006, p.99)
O objetivo deste capítulo é analisar o discurso e o Ethos presentes no romance Orgulho e Preconceito, tendo como eixo norteador a enunciação presente na personagem principal Elizabeth Bennet, que se dará através do 19° capítulo do romance.
O corpus de análise desta pesquisa teve sua primeira publicação em 1813, escrito pela, mundialmente conhecida, Jane Austen (1755-1817), tornando-se um clássico da literatura mundial. A obra é constituída em 4457 páginas distribuídas em 61 capítulos que não possuem títulos específicos, apenas numeração correspondente ao capitulo. O prefácio desta edição, foi elaborado pelos editores.
O romance se passa na Inglaterra do final do século XVIII e demonstra como as relações sociais eram travadas, e apresenta uma sociedade cheia de caprichos. Os personagens principais são: Fitzwilliam Darcy e Elizabeth Bennet, ambos possuidores de personalidade forte e marcante. Um olhar descuidado, pode captar a mensagem de conto de fadas, na qual, geralmente, o moço rico se apaixona pela moça pobre e se casam. Uma análise mais atenta permite percebe que livro é um espelho da sociedade vigente. Nele há o encorajamento da voz feminina e também uma censura à falta de representatividade da mulher.
A crítica elaborada por Jane Austen acontece por meio do discurso de sua personagem central: a jovem Elizabeth, que pela sua riqueza lexical, humor e ironia ganha destaque na literatura mundial. Nesse contexto, as possibilidades de ascensão social eram limitadas, especialmente para uma mulher sem dote.
A família Bennet possui cinco filhas, todas em busca de um matrimônio, logo a principal motivação da mãe, a Sra. Bennet era casá-las bem. A primeira frase do livro faz referência a isso: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem
7 Edição Bilíngue da editora LandMark (2016)
solteiro, possuidor de uma grande fortuna, deve estar em busca de uma esposa ” (AUTEN, 2016, p.11). A frase de abertura do romance reflete literalmente a ideologia da mãe de uma família de cinco filhas que vive para arranjar casamentos lucrativos para elas.
O estilo da escrita de Jane Austen é perceptível desde o início do romance. Ao fazer referência à verdade universal, a autora está sendo irônica. Essa frase será descontruída ao longo da obra, pela personagem principal que se apresenta, ao longo da narrativa com uma personalidade forte e humor muito característico. Ela é uma jovem muito determinada que conquista o nobre sr. Darcy, detentor de inúmeras posses e índole orgulhosa.
Tendo em vista a riqueza discursiva da obra Orgulho e Preconceito, bem como sua extensão, optou-se em selecionar o capítulo 19 para análise proposta. A escolha do capítulo se deu pela recusa da personagem Elizabeth ao pedido de casamento feito por seu primo Collins - comportamento incomum e inadequado à época. Para facilitar a compreensão da análise, o capítulo estará disposto, na íntegra, no anexo desta pesquisa.
O maior anseio da senhora Bennet - mãe das meninas, é casá-las, haja vista que nenhuma delas herdará a propriedade após a morte do pai8. Collins visita os parentes, disposto a escolher uma das primas para ser sua futura esposa, e é nesse contexto que o capítulo XIX gira.
Ao início do capítulo, tem-se o problema inicial: a solicitação de uma conversa com Elizabeth, por Sr Collins:
No dia seguinte abriu uma nova cena em Longbourn. Mr. Collins fez a sua declaração formal. Tendo resolvido fazê-lo sem perda de tempo, pois a sua licença expirava no sábado seguinte, e sem nenhum sentimento de modéstia ao torná-la angustiante para si próprio mesmo naquele momento, ele abordou a questão de uma maneira bem organizada, com todas as observações que supunha parte habitual do processo. Ao encontrar Mrs. Bennet, Elizabeth e uma das meninas mais jovens, logo depois do desjejum, ele se dirigiu à mãe com estas palavras: posso esperar, minha senhora, pelo seu interesse em sua bela filha Elizabeth, quando solicito a honra de um encontro em particular com ela no decorrer desta manhã. (AUSTEN, 2016, p.127)
8 Conforme as leis da época, a propriedade passaria para o parente homem mais próximo, que neste caso é o Sr Collins, primo das moças.
É evidenciado no trecho acima, a presença da formalidade. O que há por trás dessa fala são os costumes de uma época em que o casamento era um ritual sério e muito formal, além de ser permitido pelos pais. O Sr. Collins ao proferir: “posso esperar, minha senhora, pelo seu interesse”, demonstra que o interesse da mãe da moça é fundamental e decisivo.
A resposta da mãe revela mais sobre o contexto: “Ó querido!... Sim... certamente. Estou certa de que Lizzy ficará muito feliz...Certa de que não terá nenhuma objeção. ” A Sra. Bennet supõe tais fatos, sem ao certo conhecer o parecer da filha. Mas na verdade, ela está reproduzindo, em seu discurso, o sentimento que ela (mãe) possui acerca do fato. Como Elizabeth estava presente durante o diálogo, a fala da genitora também atua como persuasiva, com o intuito de convencer a filha a aceitar o pedido que ainda não foi feito, deixando claro o seu parecer, pois a fala persuasiva conta sempre com a intensão do enunciador.
Na sequência, mais propriamente no 5° parágrafo, Elizabeth tenta se esquivar de tal conversa, e sua mãe, mais uma vez, demonstra o interesse pela união: ”. Desejo que fique onde está. [...] Lizzy, insisto que fique e ouça Mr. Collins” Ao insistir, o que não está dito, mas é compreendido, conforme os estudos de Orlandi (2000, 2001) fica claro que a mãe aprova aquele casamento.
Ao ser deixado a sós com a prima, Sr. Collins pede que Liz ouça os motivos pelos quais o levaram a escolhê-la como sua futura esposa, não menciona de forma alguma estar apaixonado por ela ou que nutre qualquer outro sentimento dessa natureza e, apesar de não fazer questão da propriedade que herdará quando o pai de Elizabeth vier a óbito:
Minhas razões para casar são, primeiro, creio ser algo apropriado para qualquer clérigo em boas circunstâncias (como eu) para afirmar o exemplo do matrimônio em sua paróquia; segundo, que estou convencido de que isto em muito elevará minha felicidade; e, em terceiro- o que talvez, devesse ter mencionado antes, que é o conselho particular e a recomendação da muito nobre dama a quem eu tenho a honra de chamar benfeitora. (AUSTEN, 2016, p.129)
Ao mencionar tais motivos, é notável que em nenhum momento o desejo da moça será considerado ou o que essa união causaria de bom a ela. Para ele só os motivos sociais eram importantes. Ele vê Lizzy como a jovem ideal para ser sua esposa. Ainda no trecho, é extremamente perceptível que nos séculos passados, a felicidade e/ou a vontade da mulher não eram ouvidos ou se quer considerados. Jane
Austen deixa muito claro isso na enunciação presente no primo das belas moças, para Bakhtin (2006, p. 160):
É apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação, imbui-se de seu poder vital e torna-se uma realidade. As condições da comunicação verbal, suas formas e seus métodos de diferenciação são determinadas pelas condições sociais e econômicas da época.
Bakhtin concomitante com Orlandi (2001), afirma que as condições de comunicação são determinadas pela época que são produzidas, sendo assim a fala de Collins seria diferente se ele vivesse outro período, pois as condições de produção do enunciado seriam outras. A mulher, no século XVIII era propriedade dos pais e quando casasse passava a ser propriedade do marido. Era considerada um ser sem vontades e interesses, especialmente na fala do pretendente, percebe-se que essas atitudes masculinas são o reflexo da sociedade inglesa do período:
Este foi o meu motivo principal, minha bela prima, e me congratulo por não me fazer afundar em sua estima. E agora nada resta senão assegurar-lhe, na mais animada linguagem, da violência de meu afeto. À fortuna, sou totalmente indiferente e não deverei fazer nenhuma exigência dessa natureza a seu pai, já que estou bem ciente de que não poderia cumpri-la; e que mil libras, a quatro por cento, que não serão seus até o falecimento de sua mãe, é tudo o que poderá herdar. Sobre este raciocínio, portanto, deverei ficar uniformemente em silêncio, e pode se assegurar que nenhuma reprovação maldosa passará pelos meus lábios quando estivermos casados (AUSTEN, 2016, p.131).
Orlandi (1996, p.275) diz que o interlocutor deve sempre perguntar-se: “ o que ele não está querendo dizer ao dizer isto? ” Ao dizer que, em relação a fortuna, apresenta-se indiferente, pois sabe que o Sr Bennet não poderia cumpri-la, Collins pensa, mas não diz que a família dela é pobre, humilde, de baixo nível social, logo, considerando a época em que o romance estava ambientado, o casamento nada mais era do que uma forma de ascensão social e fortalecimento dos sobrenomes.
A resposta da moça, demostra o discurso protofeminista, de bater no peito e
dizer:
Você é muito precipitando meu senhor — ela exclamou — Você se esquece de que eu nada respondi. Deixe-me fazê-lo sem perda de tempo. Aceite meus agradecimentos pelo elogio que presta a mim. Sou muito sensível à honra de suas propostas, mas me é impossível fazer qualquer outra coisa senão declinar delas (AUSTEN, 2016 p. 131).
Por vezes, durante o desenvolvimento dessa pesquisa, descreveu-se Elizabeth Bennet como a frente de seu tempo. Aqui se ratificar isso: a recusa de um casamento, que teoricamente seria benéfico para sua família, demonstra que a personagem não participava da massa de mulheres que só queria se casar, não importando o companheiro, sua felicidade e/ou amor.
Seu primo demonstra autoconfiança, acreditando que a recusa da moça nada mais é que um joguinho de sedução, afinal, como uma moça recusaria um pedido de casamento tão vantajoso? É possível perceber no trecho a seguir:
[...] pois é comum às jovens rejeitarem as inciativas do homem a quem desejam secretamente aceitar, quando ele primeiro pede sua mão, e que, às vezes, a recusa é repetida uma segunda ou mesmo uma terceira vez. Portanto, não estou de modo nenhum, desaminado com o que me afirmou e espero, muito em breve, conduzi-la ao altar (AUSTEN, 2016, p.131).
No enunciado acima fica claro o Ethos discursivo. Maingueneau (1997) divide o Ethos discursivo em Ethos dito e Ethos mostrado. O primeiro diz respeito ao enunciador que apresenta de imediato suas características, salientando ser aquela ou esta pessoa; o ethos mostrado é construído através de marcas ou sinais fornecidos no discurso, tendo em vista que o enunciador não se apresenta de forma direta. O Ethos prévio (ou pré-discursivo) refere-se à imagem que o coenunciador faz do enunciador antes mesmo que ele fale e o ethos efetivo “resulta da interação dessas diversas instâncias, cujo peso respectivo varia de acordo com gêneros do discurso”. (MAINGUENEAU, 2012, p. 270).
O sr. Collins apresenta Ethos prévio de um homem preocupado em se casar, independentemente de quem seja a esposa, já que possui boas condições socioeconômicas. Ao se apresentar discursivamente, ele constrói o Ethos dito de um homem polido, que deseja atender ao pedido de sua benfeitora e servir de exemplo para seus paroquianos através do matrimônio. Por fim, o Ethos mostrado do sr. Collins: ele deseja se casar com uma moça de boa postura para servir de exemplo para seus paroquianos, pensando em sua própria felicidade e por conselho de sua benfeitora
Na sequência da unidade capitular, há o vai e vem entre recusa de Liz e a insistência do primo. As ideologias de ambos são cada vez mais expostas e ela nada mais é que a visão que cada um têm do mundo e são exteriorizados através dos enunciados.
A personagem principal demostra mais sobre sua visão de mundo ao ratificar sua resposta:
Asseguro-lhe que não sou dessas jovens (se é que há tais jovens) que são ousadas a arriscaria a felicidade pela oportunidade de serem propostas uma segunda vez. Estou perfeitamente fiel a minha recusa. Não poderia me fazer feliz e estou convencida de que sou a última mulher no mundo que lhe poderia fazê-lo. (AUSTEN 2016, p.131)
Seu posicionamento é mantido e a firmeza de sua fala denota o que ela pensa: a felicidade é o mais importante. Há um ar de elegância em sua fala, que demonstra que ela é um ser racional e tem ciência de que não seria feliz e não o faria feliz. É através da ironia, que Jane Austen constrói a crítica aos padrões da época, principalmente voltados à mulher.
Quando Elizabeth Bennet pressupõe a inexistência de jovens que façam um “charminho”, como argumentou o sr. Collins, na verdade ela está revelando que seria quase impossível, nesse contexto, uma moça recursar um casamento no tempo que o objetivo de vida da maioria delas era esse, ainda mais por mero charme.
E é exatamente por isso que seu primo custa a acreditar na recusa, além claro, de crer que ele é o melhor partido para ela.
Deve me permitir que me congratule, minha cara prima, por sua recusa de meus pedidos serem apenas palavras de momento. Minhas razões para crer nisso são, em resumo, estas: não me parece que a minha mão seja indigna da sua aceitação ou que o estabelecimento que eu possa lhe oferecer seja nada mais do que altamente desejável. Minha situação na vida, minhas conexões com a família De Burgh e meu relacionamento com a sua própria são circunstâncias grandemente a meu favor; e deve considerar mais profundamente que, apesar de suas múltiplas atrações, não é de maneira alguma certo que outra oferta de casamento possa lhe ser feita. Sua fortuna é, infelizmente, tão pequena que, muito provavelmente, anulará os efeitos de suas amáveis e adoráveis qualificações. Como eu devo, portanto, concluir que não está sendo séria ao me rejeitar, escolho atribuir isto ao seu desejo de elevar meu amor pelo suspense, de acordo com a prática habitual das mulheres elegantes (AUSTEN, 2016, p.133).
Collins acredita veementemente que é um ótimo partido, ao ser rejeitado, crê que Elizabeth mudará de ideia, já que as mulheres lutam contra seus sentimentos. Essa ideia ele escancara no seu enunciado quando diz que o seu dote era demasiadamente pequeno e, apesar das inúmeras qualidades de Liz, é pouco provável que outro cavalheiro a peça em casamento. Dessa forma ele se mostr egoísta, egocêntrico, pouco importando a opinião firme e clara da personagem central.
Ao ter sua oferta recusada, o sr. Collins também muda a maneira como refere- se à Elizabeth: inicialmente utiliza os termos “bela filha”, “companheira de minha vida futura” posteriormente “cara prima”. Na sequência do diálogo, a protagonista dirá um de seus discursos mais famosos:
Eu lhe asseguro, meu senhor, de que não tenho pretensão alguma quanto a esse tipo de elegância que consiste em atormentar um homem respeitável. Preferiria ser considerada uma pessoa sincera. Agradeço-lhe muito pela honra que me faz com suas propostas, mas aceitá-las é completamente impossível. Meus sentimentos me proíbem em todos os aspectos. Posso eu ser mais clara? Não me considere agora, como uma mulher elegante, pretendendo incomodá-lo, mas sim como uma criatura racional, falando a verdade de todo o coração (AUSTEN, 2016, p.133).
Na passagem acima, fica muito claro a ideologia de Elizabeth Bennet, bem como de sua criadora: Jane Austen - a defesa da mulher como ser racional. Liz escolheu não aceitar a proposta por justamente pensar sobre ela, pensar sobre o mundo que a cercava, fica evidente que a mocinha faz pleno uso da ironia. Nota-se também a dicotomia que a autora faz entre o racional e o emocional, quando sua personagem diz “ uma criatura racional, falando a verdade de todo o coração”, há um entrelaço entre esses dois itens: a mulher como razão e emoção.
Posteriormente o jovem rapaz relata que irá fazer a proposta aos seus pais, mostrando-se egoísta, egocêntrico, pouco importando a opinião firme e clara da personagem central: “Você é encantadora! Exclamou ele, com um ar de esquisita galanteria; e estou convencido de que, quando forem sancionadas pela expressa autoridade de seus excelentes pais, minhas propostas não falharão em ser aceitáveis” (AUSTEN, 2016, p.133).
Segundo Orlandi (1996, p.11), “Quando se lê. Considera-se não apenas o que está dito, mas também o que está implícito: aquilo que não está dito, mas está significando. ” No trecho citado, Collins não fala da fragilidade opinativa de Elizabeth (o que representavam as mulheres no geral), mas é perceptível em seu discurso, ao afirmar que irá falar com os pais da jovem moça. Esse fato reflete o não dito, ou seja, o que ele pensou: o que a jovem pensa pouco importa, o que vale é o que pensam os pais. Outro ponto a ser levantado, é a falta de voz das mulheres da época, mesmo tendo negado o pedido diversas vezes e sendo maior de idade, a Srta. Bennet não é levada a sério.
Elizabeth Bennet é uma jovem segura, sensata, inteligente e bem-humorada, que deseja casar-se com alguém que a ame cujo sentimento seja recíproco; não concorda com o comportamento social de sua família (a mãe, a sra. Bennet, deixa claro para todos o que almeja para as suas filhas casamentos promissores e que sejam com alguém da elite inglesa). A mãe preocupa-se especialmente com o comportamento de uma das irmãs mais novas, Lydia, que é fútil e “namoradeira” esta desprezava o sr. Darcy por demonstrar uma imagem de homem orgulhoso e arrogante.
Em relação ao Ethos, segundo Maingueneau (2012), identifica-se como Ethos dito: Elizabeth Bennet é confiante, sagaz e divertida, o que está demonstrado ao longo do capítulo analisado, assim como ao longo do romance. O Ethos mostrado: é o de uma jovem que idealiza um matrimônio consolidado através de relações afetivas, contrariando o desejo de sua mãe que é indiferente ao sr. Darcy, cavalheiro muito bem visto e importante na alta sociedade, porém, que apresenta um caráter orgulhoso e arrogante, e que acaba se apaixonando pela moça. Por último, tem-se o Ethos efetivo, Lizzy é de uma jovem que rompe com o preconceito acerca da representatividade crítica feminina, e ao saber dos reais sentimentos que o sr. Darcy nutre por ela, que ele a ajudou no momento em que ela mais precisou, seu comportamento em relação a ele muda e Elizabeth aceita casar-se com ele, sendo plenamente feliz ao seu lado e com as escolhas que faz:
[...] embora sem muita fluência, deu-lhe a entender que seus sentimentos haviam sofrido tamanha mudança, deu-lhe a entender que seus sentimentos haviam sofrido tamanha mudança, desde a época a que ele se referia, que a faziam agora receber com gratidão e prazer suas atuais declarações. A felicidade ocasionada por essa resposta era algo que sem dúvida ele jamais sentira; e ele se expressou então com sensibilidade e ardor quanto se pode esperar de um homem violentamente apaixonado. Pudesse Elizabeth ver seus olhos, teria percebido o quanto o embelezava a expressão de profunda felicidade refletida em todo o seu rosto; mas, embora não pudesse ver, podia ouvir, e ele lhe falou de seus sentimentos que, demonstrando tudo o que ela representava para ele, tornavam seu afeto mais valioso a cada instante (AUSTEN, 2010, p. 371).
Pelas atitudes relacionadas a ela, segundo Maingueneau (2008, p. 72) se estabelece “o ‘fiador’, ou seja, a figura que o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens. Essa figura vê-se assim, investida de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme os textos”. Sendo assim, a personagem central, Elizabeth Bennet é fiadora em Orgulho e Preconceito, apesar
dela não ser a narradora, o romance se dá pela perspectiva da personagem, uma característica do discurso livre indireto que segundo Gomes (2017, s/p):
No discurso indireto livre há uma fusão dos tipos de discurso (direto e indireto), ou seja, há intervenções do narrador bem como da fala dos personagens. Não existem marcas que mostrem a mudança do discurso. Por isso, as falas dos personagens e do narrador - que sabe tudo o que se passa no pensamento dos personagens - podem ser confundidas.
Percebe-se, pois, através de marcas textuais do romance e na biografia de Jane Austen que a personagem é a sua voz na narrativa, através de elementos como ironia, crítica indireta à sociedade, humor, para construir o caráter, o que atribui corporalidade à Elizabeth Bennet.
Ao longo do romance, a autora aborda temas frágeis, de uma sociedade machista, onde ser mulher significava não ter direitos. Sua protagonista se depara com situações que serão cruciais para seu futuro, ela muda de opinião ao longo do livro, dentro de uma época regada de convicções. Isso posto, pode-se afirmar que a personagem aprendeu com ela mesma, com os erros de sua família e principalmente pelo meio que estava inserida.
Por ser mulher, ter um pai que era pároco e viver no tempo que viveu o enunciado elaborado por Austen tem um peso muito maior para as suas coenunciadoras, não é à toa que o romance continua sendo um dos mais lidos no mundo. A autora pode ser considerada pioneira ao abordar questões de gênero (mesmo que implicitamente), para Adichie (2012, p. 41-2): “O problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero. ”
As “expectativas do gênero” no livro, são o espelho das expectativas entorno das mulheres da época. A família de Elizabeth esperava que ela se casasse com Collins e garantisse sua morada, bem como das irmãs. O final feliz da mocinha, não anula a ideologia de libertação da mulher tida por Jane Austen, ela apenas representa que as mulheres podem ser muito felizes com as escolhas que elas mesma poderiam traçar.
O que não está exposto diretamente no texto, também encontra forma de significar. Na obra Orgulho e Preconceito não há em nenhuma linha, dizeres explícitos à defesa do empoderamento feminino, isso está no contexto, no que Eni Orlandi (2001) chamaria de não dito, mas entendido.
O aparecimento do protofeminismo já havia dado seus indícios com Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges, conforme seção 1. Mas foi só a partir do corpus desta pesquisa, que a questão de desigualdade de gênero começou a criar corpo e forma. O modo como Austen encontrou de expressar seu descontentamento em relação à postura cobrada da mulher foi através da “ironia ou na fingida ignorância que lhe permitiu liberdade que nenhuma outra mulher de seu tempo desfrutou. ” (ARAGON, 2016, s/p).
O romance em análise, trouxe noções e valores, que até então, não eram abordados, pois
Jane Austen conseguiu, de certa forma, incutir na mente de suas leitoras alguns dos principais ideais feministas quando o termo mal existia: noções de igualdade, liberdade de expressão e conscientização quanto a situação inferior das mulheres na sociedade. (ARAGON, 2016, s/p).
Ela via outras possibilidades, como a liberdade de se fazer o que tem vontade, e não apenas o que é imposto, ela é tida como uma das responsáveis pela revolução ideológica que iria se instaurar nos séculos subsequentes.
O feminismo, conforme alguns erroneamente pensam, não é o contrário de machismo, é um movimento político que defende a igualdade de gênero, e uma vivência humana por meio do empoderamento feminino e libertação dos ideais bitolados.
Dentro desses conceitos surge a fala de Hannah Arendt que graças a sua teoria do Pluralismo humano põe no mesmo patamar homens e mulheres:
Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus antepassados, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da acção para se fazerem entender. Com simples sinais e sons poderiam comunicar as suas necessidades imediatas e idênticas (ARENDT,2001, p. 45).
A partir deste conceito a igualdade política seria gerada entre as pessoas. Dentro da perspectiva da inclusão do outro. Os acordos políticos, os convênios e as
leis, devem trabalhar em níveis práticos com pessoas adequadas e dispostas. Como frutos desses pensamentos, Arendt se situava de forma crítica ante a democracia representativa e preferia um sistema de conselhos ou formas de democracia direta. Afinal em pleno século XXI ainda vemos poucas mulheres na política e diferenças salariais exorbitantes, neste contexto, infelizmente, Wangari Maathai ganhadora do prêmio Nobel da paz fala com razão quando diz que: “quanto mais perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos”.
É por esses motivos que o discurso de Jane Austen é tão importante para as mulheres do mundo todo, sua influência e ideologia continuam, apesar dos 200 anos de existência da estimada obra. “É uma verdade universalmente reconhecida” que a escritora ajudou, ajuda e ajudará muitas mulheres a entenderem o seu papel e terem coragem de defender o que acreditam.
Diante do exposto, verifica-se que há relação entre o discurso de Jane Austen e o feminismo. Na sequência, registrara-se as considerações finais deste estudo, de modo a contemplar a teoria estudada em relação com o corpus de pesquisa.
O discurso elaborado por Jane Austen foi fundamental à mudança de pensamentos das mulheres, bem como da sociedade. Falar sobres os temas que ela aborda, em um tempo de ideias tão fechadas, fez sua genialidade ainda maior. Ela mostrou questões difíceis, de forma leve, levantando a bandeira da igualdade sem se expor. Não se casou, sendo fiel à sua ideologia de que pior do que viver sozinha seria se casar sem amor.
O romance foi a arma escolhida para demonstrar que a sociedade precisava de uma reforma. Austen escreveu sobre o meio em que viveu, com defeitos e qualidades, seu interesse girava em torno das pessoas e as relações que estas constituíam.
Seus personagens são reais, com falhas, como os seres humanos, talvez esse seja o grande motivo de suas obras perdurarem por tanto tempo. Jane preocupou-se em perceber a sociedade regada pelo preconceito socioeconômico em que as relações eram travadas, apenas, por aqueles da mesma camada social.
A ideologia observada nesse estudo, foi a de libertação. A romancista, acredita que as mulheres poderiam escolher, embasadas nelas próprias. Para ela, o casamento deveria ser por amor, e não ascensão social — conforme costume da época.
Seu discurso se dá pelo viés do não dito, “sabe-se por aí, ao longo do dizer, há toda uma margem de não-ditos que também significam” (ORLANDI, 2001, p. 82), o não dito, na obra da escritora, tem tanto significado quanto o dito.
Austen utilizou recursos que Ducrot chamaria de Manobras estilísticas. Essas manobras não eram referidas diretamente no texto, mas eram pressupostas, através do dito. Foi por esse procedimento, que a literata, conseguiu significar e protestar, instrumentalizando a fala protofeminista, na personagem central do romance — Elizabeth Bennet, cujo ethos, é definido como de uma moça forte, racional e divertida, que idealiza o casamento pelo laço afetivo e não tem medo as consequências de suas escolhas.
Objetivava-se demonstrar a ideologia e o ethos discursivos presentes na protagonista do livro, a Sta, Bennet, esse intento foi alcançado, de forma que ao analisar o discurso da personagem, evidenciou-se a ideologia de Jane Austen.
O enunciado incutiu nas mentes femininas, fazendo-as pensar que as mulheres também são seres racionais, capazes de opinar e escolher. Esse foi o ponto de partida dos pensamentos protofeministas.
Esse tipo de análise auxilia no ensino de Língua Portuguesa, devido à construção lexical, que possibilita inúmeros estudos acerca das escolhas realizadas pela autora para colocar a obra em posição de destaque na literatura mundial. Jane Austen revolucionou a literatura em um período em que poucas mulheres escreviam e muitas, infelizmente, não sabiam nem ler.
Isso posto, conclui-se que o discurso elaborado pela romancista repercutiu de forma positiva para as mulheres, tendo em vista os mais de 200 anos da publicação da obra, sua enunciação continua atual, promovendo reflexões constantes.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014.
ARAGON, Vanessa. O papel feminino nos romances de Jane Austen. Disponível em: < http://asgarotasdepemberley.blogspot.com.br/2016/08/beda-21-o-papel- feminino-nos-romances.html> Acesso em: 31 jun 2017.
ARENDT, Hannah. A condição humana.10ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2001.
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. São Paulo, SP: LandMark, 2016.
. A Abadia de Northanger. São Paulo, SP: LandMark, 2012.
. Persuasão. São Paulo, SP: LandMark, 2016
. [Carta] 1796, Hampshire- Inglaterra. [para] AUSTEN, Cassandra. Pemberly. 5f. Assuntos pessoais.
. [Carta] 1798, Hampshire- Inglaterra. [para] AUSTEN, Cassandra. Pemberly. 7f. Assuntos pessoais.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12.ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.
. Estética de Criação Verbal. 3. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2000. BRAIT, Beth (org). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2013.
BRANDÃO, Helena H. N. Discurso, gênero e cenografia enunciativa. São Paulo: Cortez, 2008.
BURGESS, Anthony. A Literatura Inglesa. São Paulo. SP: Ática, 1996.
CARDOSO, Lúcio. Uma Memória de Jane Austen. 10.ed. São Paulo, SP: Pedra Azul, 2010.
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2012.
CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 13. ed. São Paulo, SP: Editora Ática, 1999.
COSTA, Patrícia Ávila. Janela das Andorinhas: A experiência da feminilidade em uma comunidade rural. Disponível em: <Bibliografia1> Acesso em: 02 jun de 2017.
DUCROT, Oswald. Princípios de Semântica Linguística: Dizer e não dizer. São Paulo, SP: Cultrix, 1972.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo, SP: Editora Ática, 1991.
GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher cidadã. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/viewFile/911/10852> Acesso em: 23 jun 2017.
JASPER, Adriana. Jane Austen e o Espírito de sua época. Disponível em: < https://janeaustenbrasil.com.br/2012/03/31/jane-austen-e-o-espirito-de-sua-epoca/> Acesso em: 30 jun 2017.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de ironia. Trad. Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991
LACAN, Jacques. Seminário 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar,1985.
MACEDO, Miriam. Jane Austen, além do amor e do Casamento. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/node/9814/>. Acesso em 26 mai 2017.
MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; MOTTA, Luciana (orgs). Ethos discursivo. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2011.
. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008.
. Novas Tendências em Análise do Discurso. 3.ed. Campinas, SP: Pontes, 1997.
. Análise de textos de comunicação. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004.
ORLANDI, Eni. Análise de discurso: Princípios e Procedimentos. 3.ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.
. Discurso e texto: Formulações e Circulação dos Sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001.
. Discurso e Leitura. 4.ed. Campinas, SP: Cortez Editora, 1998.
. A Linguagem e seu Funcionamento: As formas do discurso. 4. ed. Campinas, SP: Pontes,1996.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: Uma crítica à Afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas, SP: Editora Unicamp, 1988.
SERENA, Marinês G. A cenografia no discurso literário: enlaçamento enunciativo e ethos no romance Eva Luna. 2013. 109 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-graduação em Letras, Curso de Letras, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2013.
SILVESTRE, Amanda Araújo. Puritanismo. Disponível em: < http://www.infoescola.com/cristianismo/puritanismo/> Acesso em: 20 de maio de 2017.
TODA MATÉRIA. Discurso direto, Indireto e Indireto Livre. Disponível em: < https://www.todamateria.com.br/discurso-direto-indireto-e-indireto-livre/> Acesso em 17 de julho de 2017.
VIEIRA, Eli. Feminismo. Disponível em<http://blog.elivieira.com/tag/feminismo> Acesso em 05 de junho de 2017.
Capítulo XIX
No dia seguinte abriu uma nova cena em Longbourn. Mr. Collins fez a sua declaração formal. Tendo resolvido fazê-lo sem perda de tempo, pois a sua licença expirava no sábado seguinte, e sem nenhum sentimento de modéstia ao torná-la angustiante para si próprio mesmo naquele momento, ele abordou a questão de uma maneira bem organizada, com todas as observações que supunha parte habitual do processo. Ao encontrar Mrs. Bennet, Elizabeth e uma das meninas mais jovens, logo depois do desjejum, ele se dirigiu à mãe com estas palavras:
Antes que Elizabeth, corando de surpresa, tivesse tempo de responder alguma coisa, Mrs. Bennet respondeu espontaneamente: — Oh, sim, pois não, certamente. Tenho certeza de que Lizzy terá grande prazer. Acredito que ela não fará nenhuma objeção. Venha, Kitty, vamos lá para cima. E apanhando os seus trabalhos ela se afastava apressadamente, quando Elizabeth exclamou:
Elizabeth não podia se opor a uma tal injunção. Depois de refletir um instante, achou que seria realmente melhor acabar com aquilo o mais depressa possível; tornou a sentar e, aplicando-se ao trabalho, procurou disfarçar a agitação e a curiosidade. Assim que Mrs. Bennet e Kitty se afastaram, Mr. Collins começou:
empreendimento. A senhora dificilmente poderá ignorar o verdadeiro sentido das minhas palavras. No entanto, a sua natural delicadeza pode levá-la a dissimular. As minhas atenções foram marcadas demais para serem mal compreendidas. Quase desde o primeiro momento em que entrei nesta casa escolhi-a para companheira da minha vida futura. Antes de me deixar levar pelos meus sentimentos a este respeito, talvez convenha dizer-lhe as razões que tenho para me casar e além disso os motivos que me trouxeram ao Hertfordshire com o propósito de escolher uma esposa.
A ideia de que Mr. Collins, com toda a sua solenidade, pudesse ser levado pelos sentimentos provocou no espírito de Elizabeth tamanha hilariedade, que ela não pôde utilizar a curta pausa que se seguiu a fim de procurar detê-lo. Ele prosseguiu:
era do meu dever escolher uma esposa entre as suas filhas, para que o prejuízo destas pessoas possa ser o menor possível, quando aquele triste acontecimento tiver lugar; o qual, entretanto, como eu já disse, pode demorar ainda muitos anos. Este foi o meu motivo principal, minha bela prima, e me congratulo por não me fazer afundar em sua estima. E agora nada resta senão assegurar-lhe, na mais animada linguagem, da violência de meu afeto. À fortuna, sou totalmente indiferente e não deverei fazer nenhuma exigência dessa natureza a seu pai, já que estou bem ciente de que não poderia cumpri-la; e que mil libras, a quatro por cento, que não serão seus até o falecimento de sua mãe, é tudo o que poderá herdar. Sobre este raciocínio, portanto, deverei ficar uniformemente em silêncio, e pode se assegurar que nenhuma reprovação maldosa passará pelos meus lábios quando estivermos casados.
Tornava-se agora absolutamente necessário interrompê-lo.
minha escolha. E pode ficar certa de que, quando tiver a honra de tornar a vê-la, falarei com todo o entusiasmo na sua modéstia, economia e outras estimáveis qualidades.
Contra tal perseverança na vontade de se iludir, Elizabeth nada poderia fazer. Imediatamente se levantou e saiu, determinada, caso ele persistisse em considerar as suas repetidas recusas como suaves encorajamentos, a apelar para o pai, cuja recusa podia ser decisiva e cuja atitude Mr. Collins não poderia tomar como afetação e artifício de mulher elegante.