Vozes femininas e política: os periódicos no fim dos oitocentos
Voces femeninas y política: los periódicos en el fin de siglo XIX
Female voices and politics: periodicals in the late nineteenth century
Andressa Almeida Nunes
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Brasil)
Resumo: No Brasil do fim do século XIX, os periódicos se tornaram espaços de intenso debates, principalmente sobre o fim da escravidão e a instauração da sonhada República. Nesse panorama, a participação das mulheres é frequentemente omitida, no entanto, foi nesse período, após 1880, que muitas delas passaram a escrever e a publicar textos nos mais diversos gêneros, utilizando o espaço dos jornais como tribuna e a literatura como forma de combate às questões sociais. O papel feminino na política durante o início da República gerou grandes expectativas, especialmente quanto à participação política e ao direito ao voto. Nesse cenário, escritoras como Ignez Sabino e Josephina Alvares de Azevedo revelaram-se fundamentais para compreender a inserção feminina no movimento republicano.
Palavras-chave: Periódicos; mulheres; movimento republicano; literatura.
Resumen: En el Brasil de finales del siglo XIX, los periódicos se convirtieron en espacio de intensos debates principalmente sobre el fin de la esclavitud y la instauración de la soñada República. En este panorama, la participación de las mujeres es muchas veces omitida, sin embargo, fue en ese periodo, posterior a 1880, cuando muchas de ellas empezaron a escribir y publicar textos de los géneros más diversos, utilizando el espacio de los periódicos como tribuna y la literatura como forma de lucha contra los problemas sociales. El papel femenino en la política durante el inicio de la República generó grandes expectativas, especialmente en lo que respecta a la participación política y al derecho al voto. En este escenario, escritoras como Ignez Sabino y Josephina Alvares de Azevedo se revelaron fundamentales para comprender la inserción femenina en el movimiento republicano.
Palabras clave: Periódicos; mujeres; movimiento republicano; literatura.
Abstract: In late 19th-century Brazil, newspapers became a space for intense debates, primarily about the end of slavery and the establishment of the long-awaited Republic. Within this context, women's participation is often overlooked; however, it was during this period after 1880 that many women began to write and publish texts in a wide variety of genres, using newspapers as a platform and literature as a means of combating social problems. The role of women in politics during the early days of the Republic generated great expectations, especially regarding political participation and the right to vote. In this context, writers such as Ignez Sabino and Josephina Alvares de Azevedo proved fundamental to understanding women's inclusion in the republican movement.
Keywords: Newspapers; women; republican movement; literature.
1. Introdução
O século XIX para o Brasil representou uma efervescência de transformações políticas e sociais que desenharam o rumo do país. Como exemplos, a abolição da escravidão em 1888 e a proclamação da república em 1889 foram pautas constantes na sociedade, sobretudo nos periódicos no fim dos oitocentos. Nesse mesmo período as mulheres começaram a publicar de forma mais ativa nesses mesmos periódicos, posicionando-se sobre tais temáticas e ainda lançando seus mais variados textos neste espaço.
Elas foram prolíferas, publicaram contos, novelas, poesias, folhetins, ensaios, os mais variados tipos de texto[1]. No entanto, a historiografia oficial da literatura brasileira desconsiderou tais publicações, ignorando os textos compostos nesses espaços e negligenciando a participação das mulheres em tais movimentos sociais.
Dentro desse cenário, Maria Ignez Sabino Pinho Maia (1853-1911) e Josephina Álvares de Azevedo (1851-1913) formam parte dessa história, uma história frequentemente silenciada. As contribuições dessas autoras, bem como a de outras escritoras oitocentistas, fazem parte de um passado que permanece sob o risco constante do esquecimento, pois a invisibilidade e o apagamento ainda são um desafio a ser ultrapassado que persistem no hoje.
Tanto Ignez Sabino quanto Josephina Álvares publicaram obras e possuem outras que foram perdidas pelo apagamento historiográfico. Entre as obras encontradas no hoje de Ignez Sabino estão: Ave, libertas (1885), Rosas Pálidas (1886), Impressões (1887), Contos e Lapidações (1891), Noites Brasileiras (1897), Luctas do Coração (1898) e Mulheres Illustres do Brazil (1899). Além de inúmeros textos nos jornais brasileiros. Há ainda outros 15 títulos que seriam lançados e que foram publicados e encontram-se “perdidos”.[2]
Já as obras de Josephina Álvares são: O voto feminino (1890), A mulher moderna: trabalhos de propaganda (1891) e Galeria Ilustre: mulheres célebres (1897), ao longo da vida das autoras algumas obras foram publicadas, mas esta pesquisa se debruçou especificamente em suas contribuições no jornal A família.
Isso posto, neste artigo argumenta-se que no fim do século XIX os periódicos foram espaços cruciais para a entrada das mulheres em debates públicos. Escritoras como Ignez Sabino e Josephina Álvares de Azevedo viram na imprensa não apenas uma forma de escrever, publicar e ser lida – exercitar suas criações literárias – mas uma maneira de fazer a participação política feminina ser possível, tornando os periódicos uma ferramenta de intervenção política, usando-o como tribuna de suas reivindicações.
A metodologia usada foi a de consulta em fontes primárias como os jornais do século XIX e uma revisão bibliográfica.
2. Jornais femininos e feministas[3]
As mulheres brasileiras encontraram nos jornais um espaço para ingressar na literatura e nos debates políticos. A literatura, nesse contexto, assumiu um papel estratégico, operando como instrumento de combate e resistência. Muitos eram os assuntos por elas falados, sobretudo em relação à educação feminina, direito ao voto, abolição da escravidão e direito ao divórcio.
A pesquisadora Constância de Lima Duarte fez um importante levantamento sobre as os periódicos femininos e feministas do século XIX[4] , levantamento que aborda vários aspectos sobre esse assunto. Para tanto se faz necessário diferenciar periódicos femininos de periódicos feministas que circularam no fim dos oitocentos.
Para essa discussão além dos conceitos de Constância Lima Duarte, será usada a pesquisa da pesquisadora Laila Correa e Silva (2021) que diz:
Ainda assim, retomamos brevemente essas ideias gerais sobre a imprensa feminina, voltada ao público feminino e interessada na condução da educação e da moral femininas para um sentido específico, consonante à ideologia patriarcal de dominação e subordinação do sexo feminino ao ambiente privado do lar, do casamento e da maternidade, distinta dos periódicos feministas, que buscavam justamente romper com a expectativa de dominação masculina, problematizando a posição social inferior da mulher nessa sociedade patriarcal eivada de violência e exclusão, com a finalidade de interpelar a historiografia brasileira dedicada ao início do movimento feminista no Brasil (Silva, 2021, p. 93).
De toda forma, os jornais que continham uma proposta feminina em seu cerne, como por exemplo A estação[5] não estavam totalmente isolados das ideias feministas. Um bom exemplo disso é que algumas de suas colaboradoras, como o exemplo de Ignez Sabino, escreviam nos dois tipos de jornais: femininos e feministas. Por sua vez, os jornais feministas, como o exemplo A família[6], eram mais assíduos em seus comentários e nas propostas de emancipação feminina.
Para além dos espaços legitimados, os periódicos foram um instrumento de difusão da produção de autoria feminina, começaram de forma branda, como a escrita de poemas em meio a receitas e dicas sobre o “universo feminino”[7] por exemplo; logo depois, escritas mais ácidas acerca da libertação das mulheres, acesso à educação e direito ao voto:
Mais do que os livros, foram os jornais e as revistas os primeiros e principais veículos da produção letrada feminina, que desde o início se configuraram em espaços de aglutinação, divulgação e resistência (Duarte, 2016, p. 14).
Os periódicos femininos e feministas contribuíram, à sua forma, para que as mulheres tivessem espaço, principalmente de escrita. Mesmo que à primeira vista pareça ser um pouco contraditório, as ideias difundidas nestes jornais coexistem em um mesmo cenário de exclusão total da mulher na sociedade
Disso, resultou uma profusão de diferentes opiniões sobre formas de se educar a mulher, e de fazê-la ampliar o escopo de sua participação na vida pública e na política nacional; logo, temos desde a defesa mais ferrenha de uma abertura para profissões ditas masculinas, tais como a medicina e o direito, até textos voltados à educação feminina para o exercício da maternidade e o papel de dona de casa. E essas não seriam posições contraditórias, pois conviviam com os papeis e o horizonte social de uma mulher do século XIX (Silva, 2021, p. 113).
Portanto, essas diferentes ideias propagadas pelos dois tipos de jornal em questão, como por exemplo a educação e o papel social da mulher coexistiam sem serem vistas como incompatíveis, pois refletiam os limites e as possibilidades daquele período histórico para as mulheres, sendo muitas vezes, um discurso possível dentro do panorama de exclusão feminino do século XIX.
É de suma importância ressaltar que as mulheres do século XIX, ao contrário do que se possa pensar, eram prolíficas em sua produção literária, abordando uma ampla gama de temas que refletiam seus interesses e preocupações. Elas escreviam romances, poemas, contos, artigos de opinião e discutiam assuntos que iam desde o cotidiano até política, maternidade, educação, arte e tantas outras temáticas. Escrever para os periódicos representava uma das formas mais eficazes de lutar por seus direitos.
Um dos primeiros direitos pelos quais elas lutavam era o acesso à educação. Conscientes da necessidade de fundamentar sua reivindicação em argumentos que fossem aceitos pela sociedade dominante – os homens – as mulheres sustentavam a ideia de que o acesso à escolarização feminina estava intrinsecamente ligado à maternidade: uma mulher culta seria uma mãe mais capaz, capaz de educar seus filhos de maneira mais idônea. Com esse discurso, algumas mulheres conquistaram o apoio de homens que passaram a escrever nos jornais sobre a importância da educação para as mulheres.
Posteriormente, outras questões surgiram, todas amplamente discutidas nos periódicos femininos e feministas.
Uma das razões para a criação dos periódicos de mulheres no século XIX partiu da necessidade de conquistarem direitos. Em primeiro lugar, o direito à educação; em segundo, o direito à profissão e, bem mais tarde, o direito ao voto. Quando falamos dos periódicos do século XIX, há que se destacar, pois, essas grandes linhas de luta. O direito à educação era, primordialmente, para o casamento, para melhor educar os filhos, mas deveria incluir também o direito de freqüentar escolas, daí decorrendo o direito à profissão. E mais para o final do século, inicia-se a luta pelo voto. O sufragismo foi o mote de luta do feminismo, como todos sabem, e foi também a primeira estratégia formal e ampla para a política das mulheres. Sobre tal assunto, há um número muito grande de textos, de manifestos no mundo ocidental em geral, e no Brasil não foi tão diferente, embora de modo menos acentuado (Muzart, 2003, s.p.).
Por essas razões, é pertinente pensar que os espaços de produção feminina também poderiam ser feministas, pois foram instrumentos vitais na disseminação das ideias libertárias. E, possivelmente, por isso esses espaços como jornais e revistas, tenham sido negligenciados e esquecidos por um longo período nos estudos literários. Examinar, analisar e compreender essas produções dentro desse contexto é conferir reconhecimento, expressão e relevância à nossa própria narrativa enquanto mulheres.
Os periódicos femininos e feministas tiveram uma grande ascensão depois da segunda metade do século XIX, sendo um espaço de divulgação das primeiras letras traçadas pelas penas femininas e, um pouco mais tarde, um espaço de manifestação política. Vale lembrar que vivíamos a fase de nossa história do declínio da monarquia, luta abolicionista e outras questões efervescentes:
Muitos dentre os editados por mulheres foram usados para que elas se posicionassem politicamente a favor ou contra a monarquia, a Revolução Farroupilha, a Constituinte, a abolição ou a república, tais como Idade d’Ouro (1833), República das Moças (1879), O Abolicionista Amazonas (1884) e Aves Libertas (1885). Ou para divulgarem o ideário feminista, contestar o mandonismo patriarcal e comportamento domesticado das mulheres, como O sexo Feminino (1873-1889), A mulher (1881-1883), A mensageira (1897-1900), O Escrinio (1898-1910), entre outros (Duarte, 2016, p. 23).
As escritoras do século XIX fizeram dos jornais o seu espaço de produção e divulgação literária, além de sua tribuna política. Falar das primeiras autoras do Brasil é, necessariamente, falar desses espaços de escrita que elas percorriam.
É inegável que os periódicos oitocentistas eram a “República do Pensamento”[8], um espaço que as mulheres, sendo elas feministas ou conservadoras, poderiam expressar sua opinião. Estes periódicos não se detinham apenas à função de passatempo, poderiam ser representados por segmentos destinados a jovens, mães e senhoras. Começaram a falar de moda, maternidade, educação e literatura, depois, juntando temas mais importantes, resultado de um processo que foi sendo traçado gradualmente.
Os periódicos foram fundamentais para a disseminação das ideias feministas e de propagação dos textos produzidos por mulheres. Dentre desse cenário, o já citado periódico A família, figura como pilar fundador do feminismo brasileiro.
3. Letras e lutas: periódico A família
A família foi um periódico que esteve em circulação de 1888 até 1897 segundo estudos de Duarte (2016). Editado por Josephina Álvares de Azevedo, teve seu início na cidade de São Paulo e depois mudou-se para a capital, Rio de Janeiro nesse período.
Foi uma importante ferramenta de disseminação do pensamento feminista. Em seu texto de abertura, na data de 18 de novembro de 1888, Josephina demonstra consciência do papel da imprensa em relação à emancipação feminina:
A imprensa que fulmina o erro, tambem desperta as consciencias adormecidas. Porque ella é como o raio que fende a rocha e perfura o chão.
Ha effectivamente um grande erro a fulminar.
A consciencia universal dorme sobre uma grande iniquidade secular — a escravidão da mulher.
Até hoje tem os homens mantido o falso e funesto principio de nossa inferioridade. Mas nós não somos a elles inferiores porque somos suas semelhantes, embora de sexo diverso. Temos, segundo a nossa natureza, funcções especiaes, como elles pela mesma razão as tem. Mas isso não é razão de inferioridade, porque essa traz o animal na escala natural de suas aptidões. Portanto, em tudo devemos competir com os homens— no governo da familia, como na direcção do estado.
Somos victimas de um erro, se outra cousa menos decente não é que nos traga a um plano inferior nos destinos das nações (Azevedo, 1888, p.1).
A autora defende a imprensa como força principal na transformação social, que pode quebrar paradigmas e questionar verdades amplamente difundidas. Para Josephina, a visão de inferioridade feminina é um erro, afastar as mulheres de espaços de decisão, no âmbito estatal e familiar não passa de um erro histórico de um sistema que insiste em manter as mulheres sendo inferiorizadas e subjugadas. Nesse cenário, a imprensa surge como um meio capaz de desconstruir essas ideias e de reivindicar um espaço para as mulheres na sociedade.
Outro aspecto importante de ser mencionado é a metáfora utilizada da escravidão feminina, representando a junção entre os movimentos sufragista e abolicionista. “Essa imagem de mulheres acorrentadas e escravizadas, herança da aliança entre os movimentos sufragista e abolicionista no século XIX, é outro elemento comum à literatura feminista da época” (Prudencio, 2021, p. 55).
Essa aproximação entre os movimentos pode ser vista também na atuação de Ignez Sabino, a escritora colaborou durante alguns anos com o periódico A Família, falando ativamente sobre a abolição da escravidão, bem como, a libertação feminina das amarras sociais. As mulheres foram frequentemente excluídas das narrativas oficiais, sobretudo das de teor político, no caso do movimento abolicionista não foi diferente, sua contribuição é constantemente apagada de nossa historiografia.
Ignez Sabino integrou uma sociedade abolicionista, a Ave Libertas, que foi uma sociedade fundada e liderada por mulheres, em 20 de abril de 1884, na cidade de Recife. Leonor Porto, Odila Pompílio e Maria Albertina do Rego uniram suas forças para estabelecer essa instituição, que obteve grande sucesso durante seu período de atividade. O principal objetivo da sociedade era “promover a libertação de todos os escravos do município do Recife por todos os meios lícitos e legais ao seu alcance”. No seu primeiro ano, a sociedade conseguiu emitir cerca de 200 cartas de alforria.
Ignez Sabino não só participava ativamente pela libertação das pessoas escravizadas, como também usava a literatura como forma de combate e propagação de ideias feministas, também abolicionistas. A primeira publicação, que se tem conhecimento da autora, é o poema “Far away”, publicado em 1885 na revista da sociedade Ave Libertas, mais tarde, em 1887, esse poema foi incluído em seu livro Impressões.
No poema, Sabino expressa empatia pelos exilados e proscritos, em uma clara referência não apenas à escravidão, mas também à condição de marginalização da mulher na sociedade:
Far a Way (A um proscripto)
Ao longe, o viajante um traço descobria,
O sol que o iluminava, apressado se afastou;
E o mísero, no abrigo de uma fé sem nome,
Ao teto que avistara, em paz se entregou.
Quem, sem pátria ou pouso certo,
Ruma ao sul distante, crendo ali pertencer,
No peito amaldiçoa o norte onde nascera,
E nativo se torna, sob um novo amanhecer.
Curva-se agradecido à sombra do Carmelo,
Esquece a pátria ingrata que lhe deu o ser;
Indaga a consciência, que lhe responde: é justo,
Compartilhe o novo clima, o novo renascer!
Já vês que tudo é novo, e uma sombra acolhedora
Te deu um lar singelo – o que mais desejas?
Não retornes como ingrato, tua pátria é esta;
Proscrito, enxuga a fronte, aqui se apagam as dores! (Sabino, 1887, pp. 93-94).
O poema reflete a tentativa de se ver o mundo um lugar mais igualitário, a autora sugere que a liberdade só seria completa se estivesse embasada na inclusão social e que os direitos dessas pessoas fossem reconhecidos.
Na sociedade Ave Libertas que a autora fez parte, as senhoras eram ativas, escreviam, organizavam passeatas, quermesses, maneiras de arrecadar fundos para comprar as cartas de alforria das pessoas escravizadas. É possível falar que essas mulheres estavam fazendo política em pleno século XIX, organizando-se coletivamente como destaca Constância Lima Duarte em sua obra: Memorial do Memoricídio:[9] escritoras brasileiras esquecidas pela história:
A entidade estimulava não apenas o engajamento feminino na luta contra a escravidão, mas também na construção de um pensamento coletivo que possibilitasse aos libertos o acesso à educação e à inserção social. Não por acaso, o primeiro livro de Inês tem como título o nome da instituição libertária e logrou grande êxito junto ao público, uma vez que foi declamado pela então renomada atriz Ismênia dos Santos no Teatro Santa Isabel, em Recife (Duarte, 2022, p. 88).
Para além de sua atuação na luta abolicionista, Ignez Sabino também se dedicou à luta feminista, escrevendo textos nos mais variados periódicos oitocentistas, mas sem dúvidas, seus textos no jornal A família, abordam de forma mais direta e ácida temáticas como a educação feminina, participação da mulheres na política e o fim do preconceito social. Em um de seus primeiros artigos publicados no periódico, base desse estudo, ela defende a capacidade intelectual feminina e levanta uma importante questão: a ausência das mulheres nos espaços de poder: “A mulher moderna já não é uma simples figura de ornato; ella pensa, actúa e caminha sobranceira, tendo como lemma — Emancipação e Progresso!” (Sabino, 1890, p. 5).
Ignez Continua seu texto refletindo sobre as mulheres e seus papéis sociais, usando da ironia para criticar as percepções patriarcais que desvalorizam a capacidade feminina: “Que contra senso, dizem, que affoiteza, que descalabro social!! Uma mulher votando! Um sorriso de quase compaixão friza logo os lábios do sexo forte” (Sabino, 1890, p.6).
Nessa passagem é possível observar que a autora tinha ciência que o voto feminino seria um “descalabro social”, o que significa que seria uma ameaça à ordem social estabelecida, criada por homens que retroalimentam seus próprios interesses. Nessa altura, as mulheres não possuíam direitos básicos à cidadania, mas viram na imprensa, sobretudo feministas, a possibilidade de conquista desses direitos e desconstrução dos estereótipos estabelecidos.
Tanto Josephina como Ignez viam o jornalismo como um meio de transformação da realidade das mulheres oitocentistas, uma forma de empoderamento dessas mulheres que quase não tinham direitos, por isso, sua contribuição nesse periódico foi tão importante.
Outro artigo que em minha leitura se faz importante de ser estudado é a homenagem de Ignez Sabino à sua companheira feminista e amiga, Josephina Álvares de Azevedo, em comemoração ao primeiro ano de A Família no Rio de Janeiro, Ignez reconhece a forma de resistência de sua companheira de imprensa, principalmente aos ataques e preconceitos enfrentados ao longo da existência do periódico feminista.
“Terminando, eu, a mais obscura das collaboradoras constantes da Família, abraço a collega que tão sobranceiramente ergue o lenho da instrucção, salientando-se do que é chato e vulgar, encarando com estoicismo os rudes agilhões dos preconceitos sociais. [...]” (Sabino, 1890, p.6).
4. República para quem? Da esperança à frustração
É nítido que muitas mulheres apoiaram a ascensão da república visando que o novo regime traria consigo uma nova forma de pensar, de agir e de operar: traria-lhes os direitos de votar e ser votada e com isso melhorias em vários campos da exclusão para si e outras minorias.
Em um artigo publicado, logo após a Proclamação da República, Josephina de Azevedo demonstra seu imenso entusiasmo com a novidade:
A compreensão dos destinos das pessoas do nosso sexo está tomando no Brasil uma atitude digna dos maiores aplausos.
Já se pensa em influir nos destinos sociais, em sair da nulidade completa em que temos vivido até agora.
Em Goyaz, requereram inclusão no alistamento eleitoral as Sras. D. D. Jacinta Luiza do Couto Brandão Peixoto, Silvina Ermelinda Xavier de Brito, Maria Santa Cruz de Abreu, Bárbara Augusta de Sant’Anna e Virgínia Vieira.
Em princípio, nada se conseguirá; mas com resolução e constância chegaremos a obter tudo o que a sociedade nos deve e a lei não consente (Azevedo, 1889b, p. 3).
Nesse trecho, é possível perceber o quanto Josephina acreditava que os dias que as mulheres poderiam votar estavam próximos, mesmo que ainda muito longe de 1932, período que o voto das senhoras foi permitido no Brasil, já observa-se movimentações de mulheres no estado de Goiás, por exemplo.
Possível mudança de mentalidade já abraçava as mentes femininas, pois essas mulheres estavam começando a organizar-se politicamente, para elas, era uma questão de tempo até essas barreiras serem vencidas.
O feminismo brasileiro pode ser entendido como anterior ao século XX, dentro desse panorama, mesmo que em muitos estudos dá-se à luz apenas o movimento posterior ao século XX, como destaca a pesquisadora Laila Correa Silva:
A historiografia dedicada aos estudos dos primeiros movimentos feministas, defensores da obtenção do direito ao voto feminino no Brasil, em geral, debruçou-se sobre a trajetória de mulheres nas primeiras décadas do século XX que atuaram no período mais próximo à obtenção desse direito político, esquecendo-se de mencionar as predecessoras de Bertha Lutz (1894-1976) [...]” (Silva, 2021, p. 75)
Movimentos feministas no Brasil já davam suas faces no século XIX, mas sobretudo, por meio dos periódicos oitocentistas ganharam uma circulação mais fugaz, o que permitiu que mais mulheres fossem conhecedoras da luta feminista. Assim, podemos indagar a cronologia do feminismo no Brasil, que constantemente exclui as mulheres escritoras de periódicos no fim do século XIX:
“[...]retrocedendo às décadas de 1880 e 1890 e indicando movimentos de mulheres na imprensa carioca que auxiliaram a moldar as demandas do século seguinte, dentre as quais se destaca Josephina Álvares de Azevedo, pouco citada quando se aborda a história do processo de conquista do voto feminino no Brasil, porém de suma importância para moldar o início do processo de formação do movimento feminista brasileiro. Porém, mesmo antes das reivindicações de Zefa e suas aliadas, encontramos na publicação da escritora e professora Anna Rosa Termacsics dos Santos com seu Tratado sobre a emancipação política da mulher e o direito de votar (1868) o registro textual da defesa da obtenção desse direito circulando pelos principais jornais da Corte imperial. Já à época, Termacsics dos Santos defendia a igualdade legal entre homens e mulheres, como um modo de obter autonomia, e pautava a base desta emancipação feminina a partir da obtenção do direito ao voto [ênfase no original](Silva, 2021, pp. 75-76).
Em 23 de novembro de 1899, no artigo República Brazileira, Josephina apresenta uma visão esperançosa sobre a mudança de regime. Esse momento gerou muitas especulações de como seria viver a tão sonhada república. Para as mulheres, representava a possibilidade de, enfim, serem reconhecidas como cidadãs e terem seus direitos assegurados:
A República Brazileira
Muito antes de ser esperada, foi feita a transformação do regime político sob que existia a terra de Santa Cruz.
O Brasil é hoje uma república federal de Estados ligados pela comunhão de interesses, pela identidade de raça e pelas tradições com que figura na história.
Este acontecimento memorável, que ao seu tempo entrará para a história pátria, devidamente comentado, deu-se na madrugada do dia 15 de novembro corrente (Azevedo, 1889a, p.1).
Esse trecho reflete o otimismo que marcou os primeiros anos da recém-proclamada república. As mulheres acreditavam que seus anseios finalmente seriam atendidos, mas logo perceberam que, apesar da mudança de regime, o pensamento patriarcal permanecia inalterado, trazendo consigo novos e antigos desafios, afinal, mudou-se o regime, mas não o pensamento.
A desilusão não tardou a aparecer, menos de um ano depois, Josephina Álvares de Azevedo publica em seu periódico, em 05 de julho de 1890, um artigo intitulado: “Constituição e Constituinte”, já com um tom totalmente diferente do artigo anteriormente mencionado:
Constituição e Constituinte
Está publicado o projeto de Constituição prometida ao povo brazileiro, como a carta magna da sua autonomia e da sua liberdade. O único consolo que nos resta, a nós, mulheres, de sua leitura, é que é um projecto e que, portanto, ainda está sujeito às emendas e alterações que julguem urgente os representantes da Constituinte.
Quanto aos nossos direitos nada temos que nos seja favorável; e como a liberdade é também um direito, segue-se que, a prevalecer em sua inteireza essa carta-projecto, não chegaremos a ser favorecidas quanto deviamos com o estabelecimento do novo regime governamental.
A liberdade individual só é uma verdade, quando entre todas as pessoas os direitos sociais são perfeitamente iguais. Ora essa igualdade não coexiste com a tutella permanente do homem sobre a mulher; perante as leis vigentes, de nada valem as aptidões e os talentos das mulheres, porque ellas não podem concorrer com os homens em todos os ramos da actividade civica e social; pertanto, nós não temos ainda, nem nos promette a lei projectada essa esperada autonomia, que era de prever em uma quadra de renascimento para um povo moderno.
[...]
Assim, temos o direito de esperar e de supor que na reorganização da pátria brasileira a mulher seja considerada autônoma, refletindo-se no mesmo nível do homem (Azevedo, 1890, p. 1. Os grifos são da autoria).
Para que então se proclama igualdade se ela não existe de fato?Fica claro o teor que o texto foi escrito: de indignação e frustração. Passados os primeiros momentos do novo regime, ficava evidente que as mulheres, bem como outros seres minorizados, não teriam o espaço sonhado. Mesmo que a república tenha sido feita sob a promessa de liberdade e igualdade, isso não se aplicava a todos, eles ainda continuavam excluídos dos direitos políticos.
Quando Josephina demonstra o quão hipócrita via esse novo regime, que ainda mantinha mulheres e outros minorizados excluídos socialmente, usando um discurso de uma nova era de igualdade e liberdade que está por vir. Isso tudo, como bem sabemos, permaneceu apenas no discurso e ainda levou alguns bons anos para que saísse dele.
E mesmo nos dias que vivemos, ainda colhemos frutos de uma sociedade machista e racista, ainda carregamos as sombras da construção da nossa história, que segrega pessoas pelo seu tom de pele, gênero, classe social, dentre outros.
Josephina ainda acreditava nas esperanças na revisão da Constituição pela Assembleia Constituinte, visando ser possível mudar a situação, o que sabemos, não aconteceu. Esses textos, nos provam que tanto Josephina quanto Ignez, exerciam um pensamento feminista, demonstrando que mulheres, em pleno século XIX, já questionavam questões como a escravização de pessoas, direito ao voto, acesso à educação, bem como outros assuntos importantes e políticos.
5. Conclusão
A tão sonhada República trouxe consigo a esperança de dias mais igualitários e direitos garantidos, mas essas promessas se dissiparam tão rapidamente quanto surgiram. Como afirmou a escritora portuguesa, Maria Veledas: “a República não me concedeu favores, nem a mim nem aos meus” (Veleda, 1950, p.8). O novo regime pouco fez pelas minorias, mantendo as exclusões já consolidadas. Mesmo que o sistema político tenha mudado, o pensamento permaneceu o mesmo.
Ignez Sabino e Josephina Álvares de Azevedo foram expoentes em sua época ao falar sobre a condição das mulheres brasileiras e apontar o caminho necessário para que elas tivessem acesso à educação, pudessem votar e dar a sua opinião enquanto seres pensantes.
Os periódicos exerceram um papel importante na disseminação das ideias feministas, bem como, foram um espaço que as mulheres encontraram de escrever, publicar e serem lidas, embora esses espaços sejam desconsiderados de nossa historiografia oficial, eles foram cruciais para o feminismo brasileiro.
Ignez e Josephina não apenas registraram suas inquietações frente ás questões políticas e sociais de seu tempo, usando os jornais como tribuna, elas ajudaram a consolidar o pensamento feminista nos oitocentos, assim como outras escritoras dessa época.
Seu entusiasmo com a prometida República pertencia a um sonho quase que inocente de igualdade, muitas delas viram o novo regime como a esperança do novo, da mudança, o que não aconteceu. A frustração que se seguiu foi sentida de forma dolorosa, mas não foi capaz de calar essas vozes prontas para lutar.
Como evidenciado nos artigos publicados em A Família, a nova ordem política não garantiu os direitos que essas escritoras esperavam. Esse descompasso entre a promessa republicana de igualdade e a realidade da exclusão feminina revela um padrão recorrente na história: avanços institucionais nem sempre resultam em mudanças concretas para todos os segmentos da população.
É possível aprender com essas mulheres de dois séculos atrás: a escrita é um ato político, como forma de resistir e combater. O compromisso delas, mesmo sob diversas camadas de restrição e proibição, deve ser reconhecido e é por isso que escrevo sobre elas. Ainda não demos conta de tirá-las da invisibilidade que foram trancafiadas, precisamos reconhecer e entender seus esforços, que foram os passos iniciais por dias lutas que vivemos hoje.
Ignez Sabino e Josephina Álvares de Azevedo foram mulheres do seu tempo, que fizeram o que foi possível de fazer com o que tinham, usando a literatura e a coletividade como forma de resistir e mudar a sociedade que viviam.
Referências
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Sabino, I. P. (1885). Ave, Libertas! Recife: Typographia Flores.
Sabino, I. (1890, 16 de janeiro). A família. A Família, 1(45), 5.
Veleda, M. (1950, 11 de abril). Memórias de Maria Veleda – XXII. República.
[1] Sobre o assunto, recomenda-se o trabalho organizado por Zahidé Lupinacci Muzart, Escritoras brasileiras do século XIX, uma antologia em três volumes que traz o nome de mais de 200 escritoras desse período.
[2] Essas informações foram levantadas nos jornais da época e nos próprios livros que a autora lançou contendo indicações dos lançamentos futuros. Em muitos casos, há a publicação de trechos das obras, como por exemplo no Almanach de lembranças luso-brasileiro, os títulos dessas obras são: Almas de Artistas; Genesis Espiritual; Nobreza; Contos de Salão; Avulsos; Clarice; O Naufrago Indiano; Esboços Femininos; Memórias de Meu Paiz; Através de Meus Dias; Literatura Brasileira; Um Louco do Século; O Crime de Amor; Quadros e Molduras; Fotografias Masculina.
[3] Para essa discussão trago parte de minha dissertação de mestrado intitulada: Mulheres Illustres do Brazil: para além de nomes próprios (2025).
[4]O livro Imprensa Feminina e Feminista no Brasil - Século XIX é uma obra de referência que apresenta um inventário detalhado dos periódicos do século XIX e sua relação com mulheres autoras e editoras. Além de fornecer uma ampla coleta de informações, este dicionário ilustrado desempenha um papel fundamental ao facilitar a pesquisa sobre a autoria feminina em períodos históricos anteriores. Sua contribuição é vital para a compreensão mais completa e precisa de um aspecto da história que, muitas vezes, permanece ainda apagado.
[5]A revista A Estação: Jornal ilustrado para a família foi bastante popular no Brasil Império, circulando entre 1879 e 1904. Ela tinha um foco bem específico: o universo feminino. Na época, isso incluía tudo o que estava em alta em termos de moda — principalmente os estilos vitoriano e eduardiano. Mas a publicação ia além, não eram apenas roupas; havia dicas práticas de etiqueta, comportamento e até algumas "sugestões culturais", como a forma certa de organizar eventos. É curioso pensar como essa revista era uma espécie de guia para a elite feminina, um espelho dos valores e interesses daquele período.
[6] O periódico A família, foi publicado entre 1888 e 1894. Josefina Álvares de Azevedo esteve à frente como idealizadora do jornal até 1891, quando passou a ser editado pela Imprensa Familiar. Inicialmente era publicado em São Paulo, depois passou a ser publicado na Corte.
[7] Terno amplamente usado no século XIX que associava às mulheres ao âmbito delicado e doméstico das coisas.
[8] Machado de Assis e alguns jornalistas consideravam os jornais como essa República do Pensamento, a imprensa enquanto escola em potencial, capaz de fornecer às mulheres informações que seriam úteis para elas mesmas.
[9] Nessa obra, a pesquisadora Constância Lima Duarte trouxe à luz os nomes das escritoras que sofreram apagamentos historiográficos, mesmo tendo uma boa recepção na época em que estavam vivas. Esse apagamento é configurado como “memoricídio”, tendo em vista essa não-inscrição histórica que as primeiras autoras brasileiras foram submetidas, gerando a falsa impressão de que elas não existiram.