Entre vitrines e vestiários: espacialidades de gênero e classe em Tea Rooms

Andressa Almeida Nunes[1] 

RESUMO

Este ensaio propõe uma leitura crítica do romance Tea Rooms: Mujeres obreras (1934), de Luisa Carnés, centrando-se na representação do espaço como elemento estruturante da opressão de gênero e classe. A análise articula os conceitos de heterotopia (Foucault), espacialidade e produção social do espaço (Doreen Massey), bem como reflexões sobre o apagamento das mulheres na história literária. Através da observação dos lugares narrados — o salão de chá, os bastidores, as casas e as ruas de Madri — busca-se compreender como o corpo feminino é disciplinado, silenciado e punido por desejar existir. O ensaio também resgata a trajetória de Carnés, apagada por décadas, e a insere numa tradição de resistência escrita por mulheres.

Palavras-chave: Luisa Carnés, espaço e gênero, heterotopia, escrita de mulheres, classe social, Doreen Massey

ABSTRACT 

This essay offers a critical reading of Luisa Carnés' novel Tea Rooms: Mujeres obreras (1934), focusing on the representation of space as a structuring element of gender and class oppression. The analysis articulates the concepts of heterotopia (Foucault), spatiality and the social production of space (Doreen Massey), as well as reflections on the erasure of women in literary history. Through the observation of the places narrated—the tea room, the backstage, the houses and streets of Madrid—it seeks to understand how the female body is disciplined, silenced and punished for wanting to exist. The essay also rescues Carnés' trajectory, erased for decades, and inserts it into a tradition of resistance written by women.

Keywords: Luisa Carnés, space and gender, heterotopia, women's writing, social class, Doreen Massey

INTRODUÇÃO:  

Publicado em 1934, em meio às promessas e tensões da Segunda República Espanhola, Tea Rooms: Mujeres obreras, de Luisa Carnés, é uma tessitura narrativa de denúncia e escuta — um espelho onde se inscreve a condição das mulheres proletárias de Madri. Não se trata apenas de um romance social: é uma escritura encarnada, feita de corpos exaustos, de escadas íngremes, de vitrines fechadas, de palavras que, por muito tempo, não puderam ser ouvidas.

Neste ensaio, proponho uma leitura da obra a partir da materialidade do espaço — compreendido não como cenário neutro, mas como linguagem e instrumento de poder. À luz das formulações de Doreen Massey em Space, Place and Gender (1994), penso o espaço como construção social e política, marcada por relações desiguais que moldam tanto o corpo urbano quanto os corpos que nele circulam. Massey desmonta a cisão entre público e privado, revelando como essa divisão histórica e simbólica impôs às mulheres uma espacialidade restrita, subordinada, vigiada — uma ausência arquitetada.

Ao lado de Massey, Michel Foucault, em sua formulação sobre as heterotopias, nos oferece um dispositivo conceitual para ler os lugares ambíguos, liminares, onde a ordem social se escancara: vestiários abafados, cozinhas insalubres, escadas de serviço. São esses espaços — e o modo como Luisa Carnés os escreve — que nos interessam aqui. Porque é neles que se desenha a cartografia da exclusão, do silêncio, da opressão — e, paradoxalmente, da resistência. Escrever sobre esses lugares, como faz Carnés, é dar corpo àquilo que a cidade insiste em apagar: a existência das mulheres que sustentam o mundo, mas não têm lugar nele.

Escrever nas margens: Luisa Carnés e o apagamento das mulheres na historiografia literária

Durante a maior parte da história, as mulheres habitaram as margens. Quando se pensa em educação, trabalho e produção intelectual, essa margem se adensa — transforma-se em fronteira. À mulher foi relegado o lar, a maternidade, o silêncio. Essa realidade começou a se alterar lentamente no século XIX, quando mulheres de diferentes lugares do mundo passaram a escrever sobre sua condição, suas inquietações, seus corpos e ausências. A escrita tornou-se refúgio e denúncia, casa e arma.

No século XX, esse movimento se intensificou. As mulheres começaram não apenas a habitar a ficção, mas a produzi-la — como descreve Virginia Woolf:

Ela permeia a poesia de capa a capa; está sempre presente na história. Domina a vida de reis e conquistadores na ficção; na vida real, era a escrava de qualquer garoto cujos pais lhe enfiassem um anel no dedo. Algumas das palavras mais inspiradas, alguns dos pensamentos mais profundos da literatura vieram de seus lábios; na vida real, ela pouco conseguia ler, mal conseguia soletrar e era propriedade do marido. (Woolf, 2017 p. 66-67)

Nesse movimento as mulheres deixaram de ser musas e personagens, e passaram a ocupar o lugar de narradoras da própria experiência. Escrever, para elas, era mais que um gesto literário — era gesto de existência.

Luisa Carnés é filha direta dessa tradição de insurgência escrita. Em Tea Rooms: Mujeres obreras, seu olhar se volta às mulheres trabalhadoras da Espanha republicana. E é por meio da espacialidade — das ruas, dos salões, dos vestiários e das vitrines — que ela desenha uma geografia da exclusão de gênero e classe, como um mapa sensível da condição feminina proletária.

Luisa abandonou a escola aos 11 anos para ajudar a sustentar a família. A infância lhe foi negada em nome da sobrevivência. Segundo os estudos da pesquisadora Isabel Araújo Branco (2022) não estava nos círculos intelectuais, era uma trabalhadora com horários bastantes restritos. A autora trabalhou em uma chapelaria, em uma cafeteria, foi datilógrafa, telefonista e jornalista.

Foi muito atuante em sua época escrevendo diversos contos, crônicas, peças de teatro, artigos de jornais além de publicar diversas obras. Em 1939 deixa a Espanha e é exilada no México,  onde permanecerá até sua morte em 1964. Assim como muitas escritoras de seu tempo, foi engolida pelo esquecimento, segundo Isabel Araújo:

Contudo, os seus textos caíram no esquecimento, inclusive após o restabelecimento da democracia, em 1975. Depois de alguns estudos nos últimos anos do século XX que se manteve distante do grande público, é no século XXI que os mundos editorial, académico e jornalístico resgatam esta importante figura da literatura espanhola junto de uma camada alargada de leitores. (Branco, 2022, p. 165)

        São suas obras publicadas: Peregrinos de Calvario (1928), Natacha (1930); Tea rooms, mujeres obreras (1934), De Barcelona a la Bretaña Francesa (1939); La hora del odio-inédito (1944); Rosalía de Castro, raiz apasionada de Galicia (1945); Elegía de los siete puñales de la madre- obra poética- inédita (1952); Juan Caballero (1956) e o inédito El eslabón perdido, editado  em 2002 por  Antonio Plaza. Além dos romances, Luisa Carnés deixou também palavras encenadas — peças de teatro que, por décadas, dormiram no esquecimento, reencontradas apenas recentemente no exílio mexicano. Cumpleaños (1966), Los vendedores del miedo (1966) e outros títulos ainda envoltos em silêncio, seguem inéditos ou desaparecidos, como se esperassem, pacientemente, que alguém os devolvesse ao tempo e à memória.

A escrita de Luisa Carnés se finca, com firmeza nas questões de gênero e classe — e é exatamente por isso que se faz política desde a primeira linha. Não foi por acaso que seu nome escorregou pelos vãos dos registros literários: seu esquecimento foi arquitetado, escolhido, um gesto político de silenciamento. Existiram — e ainda existem — as escritoras mais combativas, as mais suaves, as de boa família, as de margens esquecidas, as que não tinham nem chão nem nome. No saldo cruel da história, todas foram empurradas para o mesmo calabouço: o apagamento. E ali, trancadas, continuaram a escrever — com o que restava, sobre o esquecimento político a professora Zahidè Muzart destaca:

Mas gostaria de destacar hoje uma observação que me veio com a leitura de Dona Juana, também chamada em sua pátria de "la Loca". Observa-se que aquelas que compactuaram com o status quo, que compactuaram com ditaduras e opressões, ou simplesmente foram senhoras burguesas bem comportadas, essas foram muito louvadas. Na verdade, o esquecimento de escritoras do século XIX e XX é um esquecimento político. Pois não só porque mulheres escritoras são esquecidas; são esquecidas sobretudo as mais atuantes, as feministas, em uma palavra.[...]Porém, no cômputo geral, todas ficaram esquecidas, militantes ou colaboracionistas, senhoras ou cortesãs! (Muzart, 2003, s/p).

Luisa Carnés fora lida em sua época, mas como a professora Zahidé destaca, mesmo aquelas que conseguiram algum prestígio em sua época ficaram invisíveis durante muitos anos. As mais combatentes e escandalosas, para além da invisibilidade posterior à sua morte, conseguiram o repúdio da sociedade de bem, da época.

A trajetória de Luisa Carnés — mulher trabalhadora, de origem humilde, alinhada ao Partido Comunista nos anos 1930 e lançada ao exílio mexicano após a ferida aberta pela Guerra da Espanha — não é apenas sua: ela circunscreve a história de todas as mulheres empurradas ao esquecimento, e de todas as violências que se repetem no tempo.

A cidade como vitrine: espacialidades de classe e silêncio em tea rooms

Tea Rooms: Mujeres Obreras (1934)[2] é uma tessitura delicada e feroz — um romance que se ergue como denúncia e retrato: espelho da condição das mulheres trabalhadoras na Espanha que antecede a Guerra Civil. Sua narrativa, fragmentada e plural, nos oferece um coro de vozes femininas que habitam espaços que não são apenas cenário, matéria viva, pele social, corpo político. Esses espaços — tão densos quanto os silêncios que os atravessam — tornam-se linguagem. São territórios de opressão, mas também de resistência.

        A narrativa centra-se em torno de mulheres trabalhadoras, logo no início somos apresentadas a Matilde, uma jovem de família miserável que está em busca de trabalho para ajudar nos rendimentos de casa. Nos primeiros mo(vi)mentos da personagem, já somos inseridos na perspectiva da cidade enquanto vitrine, as descrições urbanas feitas por Luisa Carnés, especialmente nas passagens em que Matilde observa vitrines e ruas, sempre do lado de fora, sempre como espectadora do consumo e da liberdade. Através da fome, da lassidão e do desejo barrado, a cidade se revela como uma vitrine trancada — visível, mas inacessível.

“À porta de um bar, fritam-se filhoses. O homem da frigideira usa barrete, avental e manguitos brancos. As filhoses, douradas e fumegantes, exalam um cheiro agradável a manteiga e a anis. Matilde olha-as ao passar, sem se deter. Tem vontade de comer. As batatas «viúvas»" do almoço há muito que se dissolveram no estômago. Invade-a uma suave lassidão que lhe amolece os membros. Na carteira de flanela azul, entre um lenço e um frasquinho de perfume vazio, há dez cêntimos. No cérebro, duas perspectivas: uma filhós quente ou uma viagem de eléctrico até Cuatro Caminos.” (Carnés, 2025, p 8)

À luz da teoria de Doreen Massey, em Space, Place, and Gender (1994), compreendemos que o espaço não é neutro: é tecido por relações de poder, uma construção social que reflete e aprofunda desigualdades. É sob essa perspectiva que lemos Madri dos anos 1930 nas linhas de Luisa Carnés e nos passos exaustos de Matilde: um espaço estriado pela diferença, onde o corpo feminino caminha sem pertencimento, vendo mais do que pode tocar.

Matilde começa a trabalhar em um salão de chá localizado na Puerta del Sol, região central e turística de Madri — símbolo do brilho urbano e da circulação burguesa. Lá, somos apresentadas sobretudo a mulheres cujas condições de vida refletem as de Matilde: operárias, exaustas, muitas vezes únicas responsáveis pela renda de suas famílias. O enredo se desenrola majoritariamente nesse espaço interno — o salão de chá — com exceção dos três primeiros capítulos e do último, que nos devolvem ao exterior da cidade e ao fluxo da rua.

Como observa Hayam Abdou Mohamed (2021, p. 135), “Los dos espacios, el exterior y el interior, han sido perfectamente elaborados para resaltar la tesis de la novela: riqueza versus pobreza y el problema del hambre que atañe a la proletaria femenina.” A tensão entre dentro e fora, visível e invisível, consumo e carência, estrutura toda a obra.

O salão de chá, em sua aparência refinada e burguesa, funciona como espaço-cenário e espaço-dispositivo: ali, as mulheres são treinadas para parecer belas, silenciosas e dóceis — não para existir. Sem voz, sem autonomia, tornam-se ornamentos vivos, parte do mobiliário de um ambiente que brilha à custa do cansaço alheio. Como afirma a própria narradora:O comedimento e o ar distinto dos funcionários valorizam tanto um estabelecimento como a pureza dos seus produtos. As raparigas devem ir e vir atrás do balcão, direitas e sorridentes. (Carnés, 2025, p. 24)

É justamente nesse lugar de domesticação estética e vigilância de conduta que Luisa Carnés revela sua potência crítica: ao transformar o espaço em linguagem encarnada, ela antecipa o pensamento de Doreen Massey — mostrando que os lugares também têm gênero, também oprimem, também educam corpos para obedecer.

Doreen Massey (1994), observa que “essas relações desiguais de classe [...] são organizadas espacialmente” e tornam-se fundamento da hierarquia do trabalho e da divisão técnica da produção. O capitalismo moderno estende sua rede de controle por meio da separação entre quem pensa e quem executa, quem possui e quem serve, e essa separação se inscreve no espaço: ela é material, concreta, visível.

Em Tea Rooms, o salão de chá encena com precisão essa lógica. De um lado, a fachada elegante, a clientela refinada, os salões bem iluminados onde se consome com naturalidade o serviço alheio. De outro, os bastidores abafados e invisíveis — espaços da sujeira, da troca de roupa, da precariedade e da ausência de nome. Essa divisão não é apenas arquitetônica: é econômica, simbólica e profundamente classista. A opulência do salão depende da invisibilidade e da disciplina de quem o sustenta. A narrativa evidencia essa estrutura ao apresentar o vestiario das funcionarias como um nicho apertado e degradante:

Que asqueroso, este quarto — um escasso metro quadrado —, uma antiga cabine telefónica, forrada de serapilheira pintada de amarelo-escuro (ninho de percevejos e baratas), onde as empregadas se vestem e despem... Um nicho com porta. Lá dentro cheira mal. As sapatilhas com sola suja e gordurosa, os sapatos espalhados pelo chão e os vestidos pendurados em pregos dão-lhe um aspecto de desvão de arrumação. Nem um buraquinho por onde o ar possa renovar-se. Sobre a porta, um pequeno espelho. A lâmpada emite apenas um brilho débil. (Carnés, 2025, p. 33)

Trata-se de um espaço de desumanização, onde o corpo feminino é apagado em nome da eficiência. Como diria Massey, essa organização espacial prolonga a posse e o poder sobre o corpo alheio — e no caso das personagens de Luisa Carnés, sobre o corpo feminino proletário, que aprende desde cedo a andar “direita e sorridente”.

Outros ambientes de trabalho reforçam essa lógica. A cozinha, espaço de produção alimentar, aparece descrita como masmorra insalubre, oposta ao brilho da sala de consumo:

“A cozinha do estabelecimento é exígua e escura. O ar renova-se através de uma abertura estreita e vertical [...] Paco, o cozinheiro, vai aos poucos perdendo a visão nesta masmorra insalubre; os seus olhos, que não toleram o brilho do sol, estão extremamente debilitados.” (Carnés, 2025, p. 55)

Além da segregação entre frente e fundo, a narrativa também evidencia a verticalização simbólica da hierarquia. O patrão, apelidado de Ogre, ocupa fisicamente o ponto mais alto do salão — o andar superior, reservado também às casas de banho das clientes (únicas existentes), como indica a narradora:“Para receberem o pagamento, as empregadas sobem até o escritório, que fica junto das casas de banho destinadas aos clientes e únicas casas.” (Carnés, 2025, p. 70)

A posição elevada do dono, associado à administração e ao pagamento, reflete a distância entre quem controla e quem serve. Nesse sentido, como destaca Massey:

“One important element which any concept of uneven development must relate to [...] is the spatial structuring of those relationships – the relations of production – which are unequal relationships and which imply positions of dominance and subordination.” (Massey, 1995, p. 87)

Em Tea Rooms, a opressão não se dá apenas nas falas ou nos gestos — ela é arquitetada, inscrita no concreto: nas escadas íngremes, nas paredes frias, nos nichos abafados onde o ar não circula, no brilho desigual da luz. O espaço expõe a estrutura do mundo, e nesse mundo, as mulheres operárias circulam onde não pertencem, trabalham onde não podem existir, habitam lugares onde às vezes sequer se reconhecem. Como fica claro em uma passagem que a encarregada diz:Aqui, vocês não são mulheres; aqui, não passam de empregadas. Ao criar esta máxima , a encarregada exclui-se” (Carnés, 2025, p. 28)

A máxima dita pela encarregada — sendo ela própria mulher, também operária, também precarizada — mas já capturada pela lógica da vigilância e do silenciamento. Ela teme perder seu posto, que é apenas uma posição ilusória de controle, pois tudo aquilo que julga ter conquistado é frágil, condicionado e revogável. O que Luisa Carnés evidencia é um dispositivo de poder que se infiltra nas relações horizontais: a encarregada reproduz o discurso do patrão, o tom do capital, a distância que ela mesma sofre — porque a estrutura a ensinou a falar como quem domina, mesmo sendo dominada. Assim, ela exclui outras mulheres para não ser excluída. E ao fazê-lo, se exclui também.

Paulo Freire (1987), ao refletir sobre o ciclo da opressão, afirma: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” É exatamente esse sonho de falsa ascensão — perversamente cultivado e socialmente reforçado — que ressoa na voz da encarregada: ela não comanda, apenas repete; não liberta, apenas vigia.

A partir dessa lógica, torna-se possível compreender o espaço do salão de chá como dispositivo simbólico e disciplinador. Para entendermos melhor essa lógica, usaremos o  conceito de heterotopia, formulado por Michel Foucault na conferência Des espaces autres (1967)[3], designa certos espaços reais que funcionam como espelhos invertidos ou zonas de suspensão da norma social. Diferentemente das utopias — que são imaginárias —, as heterotopias existem concretamente, mas guardam funções simbólicas, ambíguas ou subversivas. Elas operam como dispositivos espaciais onde a sociedade projeta, esconde ou reorganiza suas tensões, e revelam, por sua arquitetura e uso, as relações de poder e exclusão que sustentam a ordem dominante. Hospitais psiquiátricos, prisões, cemitérios, salas de aula, motéis e museus são alguns exemplos: espaços que não pertencem totalmente ao mundo do cotidiano, mas também não o negam — estão entre margens.

Na literatura, as heterotopias podem ser lidas como lugares-limite, onde os sujeitos atravessam rituais de transição, vigilância ou silenciamento. Em Tea Rooms, o vestiário minúsculo — “uma antiga cabine telefónica [...] ninho de percevejos e baratas” (Carnés, 2025, p. 33) —, a cozinha abafada e o escritório elevado do patrão não são apenas cenários: são espaços heterotópicos, zonas de apagamento e disciplinamento, onde o corpo feminino é vigiado, uniformizado, despojado de sua singularidade. Funcionam como limiares simbólicos: ali, as mulheres deixam seus nomes, seus odores, suas subjetividades — para vestir a máscara da docilidade exigida pelo trabalho. Esses espaços existem para que a fachada do salão brilhe.

É justamente por meio dessa geografia de contrastes — entre o visível e o oculto, o cliente e a funcionária, o alto e o baixo — que Luisa Carnés constrói uma topografia crítica da opressão de gênero e classe. Espaços que não pertencem plenamente nem ao íntimo, nem ao público, mas ocupam um território ambíguo, encarnando a função crítica da heterotopia foucaultiana: lugares concretos, mas liminares, onde a ordem social se escancara em sua crueza. A cozinha escura, a escada de serviço e o escritório do patrão, elevado junto às únicas casas de banho — reservadas exclusivamente aos clientes — compõem um mapa heterotópico da exclusão, uma cartografia de silenciamento e hierarquia espacial.

Como o salão de chá concentra a maior parte da narrativa, temos poucas, mas significativas, menções às casas das personagens. E o que se revela é contundente: o que deveria ser refúgio, continua sendo extensão da exploração. Entre paredes estreitas e móveis escassos, o trabalho persiste: invisível, silencioso, exaustivo. Não há trégua. Não há cuidado. Apenas repetição e desgaste. Aqui, a fronteira entre o público e o privado se dilui — como lembra Doreen Massey,  que os espaços são atravessados por estruturas maiores, por forças econômicas que invadem o íntimo. Luisa Carnés compreende isso com precisão, e ao descrever os lares dessas mulheres, denuncia que a violência do sistema se infiltra até nas fechaduras domésticas.

É o que se vê, por exemplo, nas trajetórias de Marta e Matilde, jovens que sustentam seus lares em meio à precariedade. No caso de Marta, o pai está desempregado e a mãe lava roupas para sobreviver; no de Matilde, não há sequer menção à figura paterna — resta apenas a mãe e os irmãos mais novos, sugerindo um vazio masculino que recai, mais uma vez, sobre o corpo da mulher. Como analisa Massey (1994):

The fact that women are employed in the context of an extended family is important not only in the organization of the industry but also for the lives of the women themselves. They may have a wage, but they do not get the other forms of independence which can come with a job. They do not get out of the sphere of the family, they do not make independent circles of friends and contacts, nor establish a spatially separate sphere of existence (Massey, 1994, p. 209).

 Mulheres, inseridas no contexto da família extensa, não escapam da esfera doméstica nem criam um espaço próprio de existência. Ao contrário: a família, nesse sistema, reforça sua dupla subordinação, pois, “Within the family itself the double subordination of women is fixed through the mixing in one person of the role of husband or father with that of boss and employer”. ( Massey, 1994, p. 209)

O destino de Marta ilustra de forma trágica a engrenagem da exclusão. Ao desviar uma peseta[4] do caixa — gesto nascido do desespero, não da desonestidade —, ela é sumariamente posta na rua. E é sobre a rua, como espaço simbólico das mulheres descartadas pelo sistema, que Luisa Carnés projeta uma de suas denúncias mais contundentes: a prostituição como única alternativa possível. A mais jovem das funcionárias é assim lançada à margem, revelando que, para as mulheres pobres, não há espaço para o erro — todo desvio é punido com a totalidade da perda.

Em contrapartida, Laurita encarna um movimento inverso. Vinda de uma classe social mais alta, ela não está no salão de chá por necessidade econômica, mas por castigo disciplinar. É afilhada do dono do salão, como revela uma das passagens da obra:

“Está a estudar para professora, sabe? Mas não dá uma para a caixa; é muito teimosa, não quer estudar. Eu disse a Fermín — é o Ogre —: vou levar para o salão por uma temporada, a ver se espevita um pouco e se ganha amor ao estudo. Quando vir o que é um trabalho…” (Carnés, 2025, p. 72)

Aqui, fica evidente que, mesmo quando as mulheres vêm de lugares de privilégio relativo, seus destinos continuam marcados por controle e expectativas normativas. Laurita não escolhe trabalhar — ela é enviada. Seu corpo, sua trajetória, sua liberdade continuam sob tutela. E é justamente ela, que cruza esse caminho descendente, quem tem o fim mais trágico: apaixona-se por um ator frequentador do salão, engravida e, diante do silêncio e do medo, recorre a um aborto clandestino. Mais adiante, a narrativa nos apresenta a cena final de seu corpo envolto num lençol — após um aborto com as hastes de um guarda-chuva.

Laurita não representa apenas uma exceção de classe: ela representa milhares de mulheres atravessadas pela violência da clandestinidade, da solidão e do não-direito à decisão sobre o próprio corpo. Seus corpos não lhes pertencem: são objetos de disciplina, de vergonha, de sacrifício. O corpo feminino, em Tea Rooms, é território tomado — e Laurita, como Marta, morre por não se encaixar.

O salão de chá, em Tea Rooms, é o reflexo heterotópico de Madri — promessa e prisão. As mulheres circulam pelas ruas centrais, observam vitrines que jamais poderão tocar, sonham com bondes que não as levarão a lugar algum. Estão ali, mas não pertencem. São presença desautorizada. São espectadoras da modernidade, não protagonistas. Doreen Massey define essa condição com precisão: o espaço é simultaneidade — feito de exclusões e inclusões que coexistem. Luisa Carnés traduz essa simultaneidade em imagens que ferem: as ruas brilham como vitrines de um mundo que se oferece, mas recusa; um mundo que nega às mulheres proletárias até mesmo o direito ao desejo.

Assim, o salão de chá não é apenas cenário: é dispositivo e espelho. Ele condensa, em escala reduzida, a estrutura social que se projeta sobre Madri e suas mulheres: uma cidade que promete progresso, mas distribui espelhos opacos; que oferece vitrines, mas jamais entrega as chaves. Nas ruas centrais ou nos bastidores do salão, as personagens de Tea Rooms vivem o paradoxo de estar dentro e fora ao mesmo tempo: circulam, mas não pertencem; trabalham, mas não existem; desejam, mas são punidas por desejar. Luisa Carnés transforma cada escada, cada vitrine, cada quarto abafado em metáfora política — espaço onde se escreve, com o corpo feminino, a cartografia da exclusão. No cruzamento entre classe e gênero, Tea Rooms nos oferece uma topografia da opressão, mas também um mapa de denúncia — e, talvez, de memória.

É nesse cenário de clausura e vigilância que Matilde realiza o gesto que escapa ao script. Diferente de Marta, expulsa; diferente de Laurita, morta por um aborto clandestino; Matilde diz não. No penúltimo capítulo, ao recusar o entregador que lhe propõe casamento — um homem como ela, morador de Cuatro Caminos —, ela reivindica o direito à liberdade:

“Bom, menina Matilde, quando vai querer que espere por si?”
“Não, esqueça isso; não me espere nunca.”
Matilde respondeu muito rapidamente. Não. Impossível. Quando vê desaparecer o rapaz, sente-se livre, completamente livre. (Carnés, 2025, p. 165)

Luisa Carnés encarna em Matilde a mulher que rompe o destino traçado, que rejeita o ciclo repetido de dependência, maternidade forçada ou apagamento. Ela não é empurrada à margem: ela escolhe a beira do caminho como ponto de fuga. É com ela que o romance se fecha — com uma interrogação que atravessa o tempo: “Quando será ouvida a sua voz?” — a voz da mulher.

Noventa e um anos depois, a pergunta ainda ecoa. E o corpo do texto de Carnés, como o teu, continua insistindo na escuta.

CONCLUSÃO

Em Tea Rooms, Luisa Carnés faz do espaço uma linguagem e do corpo feminino um território de conflito. O romance revela como a arquitetura da cidade, dos locais de trabalho e das casas das operárias é também a arquitetura da opressão: cada escada, cada quarto abafado, cada vitrine se inscreve como metáfora da exclusão. A crítica social emerge do concreto — da luz desigual, da ausência de banheiro para as funcionárias, das portas que não se abrem para quem serve.

Mas Tea Rooms não é apenas denúncia: é também afirmação. Através de Matilde — a única personagem que escolhe seu destino, que diz “não” ao casamento, à dependência e ao apagamento —, Carnés escreve uma possibilidade de resistência. A pergunta final do romance, “Quando será ouvida a sua voz?”, ressoa como provocação que atravessa o tempo. Este ensaio, ao escutar esse chamado, propõe-se também como resposta. Porque escrever, para as mulheres da margem, sempre foi gesto de presença, e escutá-las — como aqui se tenta — é gesto de restituição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Abdou Mohamed, H. (2021). “Los que suben en ascensor y los que utilizan la escalera interior”: Género y clase en la España republicana en Tea Rooms. Mujeres obreras de Luisa Carnés. Communitas, 5(12), 132–147. https://periodicos.ufac.br/index.php/COMMUNITAS/article/view/5710

Araújo Branco, I. (2022). Luisa Carnés: A recuperação de uma voz feminina do início do século XX pela academia e pelas editoras. Diálogos, 26(1), 163–176. https://doi.org/10.4025/dialogos.v26i1.62292

Carnés, L. (2025). Tea Rooms – Mulheres operárias (H. Pitta, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 1934)

Foucault, M. (2013). O corpo utópico; As heterotopias (S. T. Muchail, Trad.; D. Defert, Pósf.). São Paulo: n-1 Edições. (Obra original publicada em francês como Les corps utopique ; Les hétérotopies)

Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido (17ª ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra

Massey, D. (1994). Space, place and gender. Minneapolis: University of Minnesota Press.

Muzart, Z. L. (2003). Uma espiada na imprensa das mulheres no século XIX. Estudos Feministas, 11(1), 225–233. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2003000100013

Woolf, V. (2017). Um teto todo seu (A. S. de Lemos, Trad.). São Paulo: Tordesilhas. (Obra original publicada em 1929)

OBRAS CONSULTADAS:

Cabrera, A. P., & Montemezzo, L. F. (2020). Luisa Carnés: A história de uma escritora exilada. Literatura e Autoritarismo, (34). https://doi.org/10.5902/1679849X41074 

Carnés, L. (2016). Tea Rooms: Mujeres obreras. Gijón: Hoja de Lata Editorial.


[1]  É doutoranda em Literaturas, Artes e Culturas Modernas pela Universidade de Lisboa e em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde também obteve o título de Mestra em Literatura Brasileira. Licenciada em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC) e em Pedagogia pela Unifacvest, é ainda especialista em Literatura Brasileira e Inovação na Educação. Atuou como investigadora na Universidade Nova de Lisboa e colaborou com o Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL) e com o Núcleo de Literatura e Memória (UFSC), onde desenvolveu trabalhos voltados à interseção entre literatura e tecnologia.

[2] Para este trabalho optei pelo uso da versão portuguesa da editora Antígona lançada em 2025.

[3] Usarei a edição em Língua Portuguesa do livro que reúne os escritos de Michel Foucault: O corpo utópico, As heterotopias lançado em 2013 com posfácio de Daniel Defert.

[4]  Foi a moeda corrente da Espanha entre 1869 e 2002.